Texto: Pedro Borba
Ilustração: Marcelo Viola
Há tempo sou fascinado pelo começo do filme 2001: Uma Odisséia no
Espaço, em que se conta a “aurora do homem”. Uma tribo de macacos disputa com
outra um lago de água pura. A tribo expulsa tem contato com um monolito misterioso
(aí as interpretações abundam), e então um dos macacos (ou das macacas, difícil dizer),
cismando sobre um esqueleto animal, toma em mãos um osso largo e com ele desfere
golpes sucessivos sobre a ossada. O momento épico corresponde à descoberta do poder do utensílio. Eu poderia gastar uns dois parágrafos elocubrando sobre o significado da coisa, mas deixemos barato: o macaco aprende a transformar alguma coisa em meio
para conseguir outra. Empunhando o osso, sua tribo retoma o córrego à força. A aurora
da humanidade contada nesses termos implica uma conclusão que sempre me soou
perturbadora: nossa existência tem como dínamo o uso combinado da inteligência e
da violência, da razão e da brutalidade. Como quem viu o filme lembra, o macaco (ou
já “humano”) vitorioso lança em êxtase o osso aos ares e, numa das elipses mais
famosas do cinema, o plano é bruscamente cortado para uma nave espacial, como se
todo o interregno fosse subentendido. A diferença do osso para a nave espacial é uma
questão de grau. O que importa é que, das origens à colonização do espaço, o
protagonista é o mesmo macaco racionalmente violento.
Nicolau Maquiavel queria que seu príncipe fosse capaz de combater com as
leis e com a força, e por isso recorreu à imagem de um centauro, misto de sapiência
e vigor físico. Nós já aprendemos onde foram parar os profetas desarmados. A
expectativa de Nicolau é que a sapiência (o cálculo político, a racionalidade estratégica,
a virtude) poderia e deveria governar a brutalidade, e assim nosso atributo animal estaria
subordinado à consciência. Minha angústia é duvidar de que isso seja possível. Os
macacos da nossa aurora utilizaram o osso como meio para obter água, o que é muito
razoável; ao mesmo tempo, fizeram-no pela subjugação violenta de seus semelhantes, o
que é no mínimo questionável.
Por mais imorais que sejam, as guerras sempre se baseiam em justificativas
que as tornam legítimas. Sua condução é um primoroso esforço de racionalização,
planejamento e sofisticação tecnológica. Mas, ainda assim, isso a torna algo além de um
colossal açougue humano? É sensato pensar que nossa consciência é soberana sobre a
organização de um massacre coletivo de inocentes? No fim das contas, existe sentido no
banho de sangue?
O esforço de matar os outros foi talvez o segmento em que a humanidade mais e mais cedo se profissionalizou. A necessidade imperativa de matar para não morrer fez com que a organização para a guerra fosse o caso mais exemplar de disciplina, unidade, coesão e integração entre indivíduos. Não é à toa que as tentativas de hiperracionalizar a sociedade (seja em um Platão ou em um nacional-socialista) buscaram uma inspiração marcial na estrutura militar. Mais do que a organização social, a guerra impulsionou criações materiais: desde o osso do macaco, a humanidade convive mais com criações destruidoras do que com destruição criadora.
A violência ganhou escala e se burocratizou como mecanismo para deixar de ser humanamente violenta, e aí precisamente foi quando se tornou mais brutal. Por aí, vê-se uma aparência circunspecta de racionalidade e consciência, que se sublimam na otimização logística e no planejamento estratégico, tudo isso parte de uma orquestração voltada a matar e não morrer. É o extermínio dotado de cálculo e método.
Por trás da aparência enxadrística, jaz um pleno irracionalismo. Afinal, é
inevitavelmente absurdo os seres humanos otimizarem a destruição uns dos outros,
serem capazes de transformar a morte em estatística e receberem medalhas por isso.
A matança é, ao fim e ao cabo, aterradora. Por isso, a aparência de organização da
guerra não é capaz de ocultar a bestialidade que lhe subjaz. A racionalização dos meios
empregados não é suficiente para legitimar suas finalidades, e essas sempre parecem
fúteis perante os custos envolvidos. Já que começamos por um filme de S. Kubrick,
talvez seja o caso de lembrar outro: é impossível assistir Glória Feita de Sangue sem
sentir-se estarrecido com a falta de sentido das trincheiras, indefinidamente moendo
carne humana. Enfim, há Razão nas trincheiras?
Como disse um personagem de Quino, o “surpreendente não é que haja vida
em outros planetas, mas que ainda haja neste”. Se nós ainda não nos destruímos
completamente, como poderemos dizer isso com certeza das próximas gerações? Temos alguma garantia confiável contra nós mesmos?
Bob Dylan disse que os donos da guerra forjaram o pior dos medos possíveis:
o medo de trazer crianças ao mundo. Veja isso: já não é mais o medo da morte, mas
o medo da vida. O medo do que irão viver as crianças. O medo do que está por vir, a
insegurança do futuro. O medo que elas sejam mortas ou, pior, o de que elas matem
também e ainda mais. O medo, simplesmente. A guerra gera medo e o medo gera
guerra.
Podemos pensar a guerra como uma atividade racionalmente organizada para
desvelar forças profundas e brutais de nós mesmos. Mas há quem veja precisamente o
contrário: ao invés de organização, planejamento e cálculo, um campo de batalha é
antes um imenso entrevero de aço, fumaça, sangue, fogo, choro e ruído. Antes de
procedimentos coordenados e manobras treinadas, um exército em combate responde a
seu próprio ímpeto destrutivo, ao desafogo de sua fúria coletiva, ao seu instinto de
sobrevivência. Entre o soar da trombeta e os livros de história, há um momento caótico
de matança irrestrita que não corresponde nem ao que se planejou, nem ao que depois
será contado. Como dizer que isso não é verdade? Como executar a guerra sem levar
em conta a névoa do campo de batalha?
Mas aí é que o gato pula. Ao dizer que na condução da guerra predomina o
irracionalismo do impulso, confecciona-se ao mesmo tempo um sentido mais amplo
para a guerra enquanto tal. Esse sentido é uma forma de racionalização. Em uma
comparação peculiar, um pensador reacionário como Joseph de Maistre comparou a humanidade a uma árvore, e a guerra à poda. Para que a humanidade gere frutos (para além de simplesmente existir), haveria que se cortar os galhos sobrantes, aparar a copa, mantê-la sempre pujante. A violência aparente esconde uma razão superior.
Metafisicamente, portanto, a guerra é um mal necessário. Seguindo em suas
comparações biológicas, ele sentencia: “o sangue é o adubo dessa planta que se chama
gênio”. No fim das contas, o banho de sangue obedece a razões que a própria razão
desconhece.
Numa linha muito parecida, um personagem de Graham Greene (Harry Lime)
compara: “Na Itália, pelos trinta anos sob os Bórgias, eles tiveram guerras, terror,
assassinatos, banhos de sangue, mas eles produziram Michelangelo, Leonardo da
Vinci e a Renascença. Na Suíça, eles tiveram um amor fraternal; tiveram 500 anos de
democracia e paz – e o que eles produziram? O relógio-cuco”.
Agora vamos ser claros a respeito do pulo do gato: ambas as formas de ver a
racionalidade da guerra se equilibram entre a bestialidade intrínseca e a racionalidade
abstrata. Ou a guerra é uma organização sofisticada e calculista para efetuar uma
barbaridade, ou é uma barbaridade evidente que esconde um sentido racional profundo.
Somos bestas e deuses ao mesmo tempo e inevitavelmente. Deuses seríamos se
usássemos toda a racionalidade para o autocultivo pacífico e livre; bestas seríamos se
matássemos pelo prazer assassino de ver o sangue quente e os gritos de pavor. Tal qual
o macaco de Kubrick, a humanidade usa a inteligência e a violência sem saber qual
governa qual.
O que é perturbador é a sensação de rendição ao osso. O foro íntimo de qualquer
ser humano sugere que a guerra não é necessária, e que nosso propósito não deveria ser vencê-la, mas evitá-la. Para quem valoriza a vida, ela não pode ser racional, mas
absurda. Não obstante, é um absurdo recorrente. Um absurdo que, ao recorrer, nos faz
lembrar que há algo que não governamos pela ética, mas pela política. Um absurdo que
se torna sensato se pensado no cálculo estrito do conflito, pois se as duas tribos não
podem compartilhar o córrego, alguém deverá ceder. E, por fim, um absurdo que se
torna racional quando eu faço dele o único meio possível para me apropriar do córrego
que me fará sobreviver. Mas um racional que se torna de novo absurdo quando se vê a
prática bárbara encoberta por esse raciocínio. Chegar de alguma forma à conclusão de
que matar o próximo é um dever significa desumanizar-se, ou seria isso mesmo que nos
torna humanos? Nossa história caminha nos passos da Marcha da Insanidade de que
nos falou Kenny Braga?
Claro que podemos sempre mascarar a realidade em uma ficção humorística e
achar que a Vida é Bela em um campo de concentração. Ou, como os personagens de
Kurt Vonnegut, podemos esquecer a barbárie pensando nas receitas que iremos preparar
quando a guerra acabar, saboreando-as na liberdade dos pensamentos. Podemos compor uma música dizendo “imagine que não há países” nem “nada para matar ou morrer”, e até dizer que isso não é algo difícil de imaginar. Talvez isso ainda seja o mais
recomendável. Para mim, embora sedutor, continua sendo algo difícil de imaginar.
Enquanto imagino um mundo em que não há nada por que matar ou morrer, vejo outro
em que as pessoas morrem por nada. Continuo vendo esse inacreditável paradoxo
racionalmente brutal que se chama guerra, genocídio, limpeza étnica. E sigo intrigado
com aquele primeiro macaco.