Sobre bestas e deuses (I)

Texto: Pedro Borba

Ilustração: Marcelo Viola

Há tempo sou fascinado pelo começo do filme 2001: Uma Odisséia no
Espaço, em que se conta a “aurora do homem”. Uma tribo de macacos disputa com
outra um lago de água pura. A tribo expulsa tem contato com um monolito misterioso
(aí as interpretações abundam), e então um dos macacos (ou das macacas, difícil dizer),
cismando sobre um esqueleto animal, toma em mãos um osso largo e com ele desfere
golpes sucessivos sobre a ossada. O momento épico corresponde à descoberta do poder do utensílio. Eu poderia gastar uns dois parágrafos elocubrando sobre o significado da coisa, mas deixemos barato: o macaco aprende a transformar alguma coisa em meio
para conseguir outra. Empunhando o osso, sua tribo retoma o córrego à força. A aurora
da humanidade contada nesses termos implica uma conclusão que sempre me soou
perturbadora: nossa existência tem como dínamo o uso combinado da inteligência e
da violência, da razão e da brutalidade. Como quem viu o filme lembra, o macaco (ou
já “humano”) vitorioso lança em êxtase o osso aos ares e, numa das elipses mais
famosas do cinema, o plano é bruscamente cortado para uma nave espacial, como se
todo o interregno fosse subentendido. A diferença do osso para a nave espacial é uma
questão de grau. O que importa é que, das origens à colonização do espaço, o
protagonista é o mesmo macaco racionalmente violento.

Nicolau Maquiavel queria que seu príncipe fosse capaz de combater com as
leis e com a força, e por isso recorreu à imagem de um centauro, misto de sapiência
e vigor físico. Nós já aprendemos onde foram parar os profetas desarmados. A
expectativa de Nicolau é que a sapiência (o cálculo político, a racionalidade estratégica,
a virtude) poderia e deveria governar a brutalidade, e assim nosso atributo animal estaria
subordinado à consciência. Minha angústia é duvidar de que isso seja possível. Os
macacos da nossa aurora utilizaram o osso como meio para obter água, o que é muito
razoável; ao mesmo tempo, fizeram-no pela subjugação violenta de seus semelhantes, o
que é no mínimo questionável.

Por mais imorais que sejam, as guerras sempre se baseiam em justificativas
que as tornam legítimas. Sua condução é um primoroso esforço de racionalização,
planejamento e sofisticação tecnológica. Mas, ainda assim, isso a torna algo além de um
colossal açougue humano? É sensato pensar que nossa consciência é soberana sobre a
organização de um massacre coletivo de inocentes? No fim das contas, existe sentido no
banho de sangue?

O esforço de matar os outros foi talvez o segmento em que a humanidade mais e mais cedo se profissionalizou. A necessidade imperativa de matar para não morrer fez com que a organização para a guerra fosse o caso mais exemplar de disciplina, unidade, coesão e integração entre indivíduos. Não é à toa que as tentativas de hiperracionalizar a sociedade (seja em um Platão ou em um nacional-socialista) buscaram uma inspiração marcial na estrutura militar. Mais do que a organização social, a guerra impulsionou criações materiais: desde o osso do macaco, a humanidade convive mais com criações destruidoras do que com destruição criadora.

1

A violência ganhou escala e se burocratizou como mecanismo para deixar de ser humanamente violenta, e aí precisamente foi quando se tornou mais brutal. Por aí, vê-se uma aparência circunspecta de racionalidade e consciência, que se sublimam na otimização logística e no planejamento estratégico, tudo isso parte de uma orquestração voltada a matar e não morrer. É o extermínio dotado de cálculo e método.

Por trás da aparência enxadrística, jaz um pleno irracionalismo. Afinal, é
inevitavelmente absurdo os seres humanos otimizarem a destruição uns dos outros,
serem capazes de transformar a morte em estatística e receberem medalhas por isso.
A matança é, ao fim e ao cabo, aterradora. Por isso, a aparência de organização da
guerra não é capaz de ocultar a bestialidade que lhe subjaz. A racionalização dos meios
empregados não é suficiente para legitimar suas finalidades, e essas sempre parecem
fúteis perante os custos envolvidos. Já que começamos por um filme de S. Kubrick,
talvez seja o caso de lembrar outro: é impossível assistir Glória Feita de Sangue sem
sentir-se estarrecido com a falta de sentido das trincheiras, indefinidamente moendo
carne humana. Enfim, há Razão nas trincheiras?

Como disse um personagem de Quino, o “surpreendente não é que haja vida
em outros planetas, mas que ainda haja neste”. Se nós ainda não nos destruímos
completamente, como poderemos dizer isso com certeza das próximas gerações? Temos alguma garantia confiável contra nós mesmos?

Bob Dylan disse que os donos da guerra forjaram o pior dos medos possíveis:
o medo de trazer crianças ao mundo. Veja isso: já não é mais o medo da morte, mas
o medo da vida. O medo do que irão viver as crianças. O medo do que está por vir, a
insegurança do futuro. O medo que elas sejam mortas ou, pior, o de que elas matem
também e ainda mais. O medo, simplesmente. A guerra gera medo e o medo gera
guerra.

Podemos pensar a guerra como uma atividade racionalmente organizada para
desvelar forças profundas e brutais de nós mesmos. Mas há quem veja precisamente o
contrário: ao invés de organização, planejamento e cálculo, um campo de batalha é
antes um imenso entrevero de aço, fumaça, sangue, fogo, choro e ruído. Antes de
procedimentos coordenados e manobras treinadas, um exército em combate responde a
seu próprio ímpeto destrutivo, ao desafogo de sua fúria coletiva, ao seu instinto de
sobrevivência. Entre o soar da trombeta e os livros de história, há um momento caótico
de matança irrestrita que não corresponde nem ao que se planejou, nem ao que depois
será contado. Como dizer que isso não é verdade? Como executar a guerra sem levar
em conta a névoa do campo de batalha?

2

Mas aí é que o gato pula. Ao dizer que na condução da guerra predomina o
irracionalismo do impulso, confecciona-se ao mesmo tempo um sentido mais amplo
para a guerra enquanto tal. Esse sentido é uma forma de racionalização. Em uma
comparação peculiar, um pensador reacionário como Joseph de Maistre comparou a humanidade a uma árvore, e a guerra à poda. Para que a humanidade gere frutos (para além de simplesmente existir), haveria que se cortar os galhos sobrantes, aparar a copa, mantê-la sempre pujante. A violência aparente esconde uma razão superior.

Metafisicamente, portanto, a guerra é um mal necessário. Seguindo em suas
comparações biológicas, ele sentencia: “o sangue é o adubo dessa planta que se chama
gênio”. No fim das contas, o banho de sangue obedece a razões que a própria razão
desconhece.

Numa linha muito parecida, um personagem de Graham Greene (Harry Lime)
compara: “Na Itália, pelos trinta anos sob os Bórgias, eles tiveram guerras, terror,
assassinatos, banhos de sangue, mas eles produziram Michelangelo, Leonardo da
Vinci e a Renascença. Na Suíça, eles tiveram um amor fraternal; tiveram 500 anos de
democracia e paz – e o que eles produziram? O relógio-cuco”.

Agora vamos ser claros a respeito do pulo do gato: ambas as formas de ver a
racionalidade da guerra se equilibram entre a bestialidade intrínseca e a racionalidade
abstrata. Ou a guerra é uma organização sofisticada e calculista para efetuar uma
barbaridade, ou é uma barbaridade evidente que esconde um sentido racional profundo.
Somos bestas e deuses ao mesmo tempo e inevitavelmente. Deuses seríamos se
usássemos toda a racionalidade para o autocultivo pacífico e livre; bestas seríamos se
matássemos pelo prazer assassino de ver o sangue quente e os gritos de pavor. Tal qual
o macaco de Kubrick, a humanidade usa a inteligência e a violência sem saber qual
governa qual.

O que é perturbador é a sensação de rendição ao osso. O foro íntimo de qualquer
ser humano sugere que a guerra não é necessária, e que nosso propósito não deveria ser vencê-la, mas evitá-la. Para quem valoriza a vida, ela não pode ser racional, mas
absurda. Não obstante, é um absurdo recorrente. Um absurdo que, ao recorrer, nos faz
lembrar que há algo que não governamos pela ética, mas pela política. Um absurdo que
se torna sensato se pensado no cálculo estrito do conflito, pois se as duas tribos não
podem compartilhar o córrego, alguém deverá ceder. E, por fim, um absurdo que se
torna racional quando eu faço dele o único meio possível para me apropriar do córrego
que me fará sobreviver. Mas um racional que se torna de novo absurdo quando se vê a
prática bárbara encoberta por esse raciocínio. Chegar de alguma forma à conclusão de
que matar o próximo é um dever significa desumanizar-se, ou seria isso mesmo que nos
torna humanos? Nossa história caminha nos passos da Marcha da Insanidade de que
nos falou Kenny Braga?

Claro que podemos sempre mascarar a realidade em uma ficção humorística e
achar que a Vida é Bela em um campo de concentração. Ou, como os personagens de
Kurt Vonnegut, podemos esquecer a barbárie pensando nas receitas que iremos preparar
quando a guerra acabar, saboreando-as na liberdade dos pensamentos. Podemos compor uma música dizendo “imagine que não há países” nem “nada para matar ou morrer”, e até dizer que isso não é algo difícil de imaginar. Talvez isso ainda seja o mais
recomendável. Para mim, embora sedutor, continua sendo algo difícil de imaginar.

Enquanto imagino um mundo em que não há nada por que matar ou morrer, vejo outro
em que as pessoas morrem por nada. Continuo vendo esse inacreditável paradoxo
racionalmente brutal que se chama guerra, genocídio, limpeza étnica. E sigo intrigado
com aquele primeiro macaco.

A Copa do Mundo acabou.

Uma crônica que escrevi em agosto de 2010 e ainda não tinha publicado. Como é natural, algumas coisas estão datadas, mas resolvi manter o texto original.

Texto: Pedro Borba

A Copa do Mundo acabou e com ela foi-se nosso ufanismo radical. Agora vamos voltar à vida de sempre, precisaremos assistir um futebol ordinário, trabalhar todos os turnos da semana, assistir um futebol ordinário e – o pior de tudo – trabalhar todos os turnos da semana. Em vez de bobagens verde-amarelas e propagandas sentimentais, teremos novela e horário eleitoral. Acabou aquele assunto que diz respeito a todos, a fábrica incessante de notícias inúteis, a celebração de um polvo vidente. Acabou a graça de assistir Eslováquia e Grécia. E o Maradona não é mais o técnico da Argentina.

A Copa do Mundo acabou e mais uma vez não ganhamos. Essa grande farsa que é o futebol, que faz milhões de pessoas chamarem onze pessoas de nós, teve outro fim trágico. Mas não um grande trágico, como a derrota dramática de 1998 ou a grande decepção de 1982. Foi um trágico acanhado, um trágico holandês, um trágico quartas-de-final. Perdemos como mais um dos trinta e um que sempre e obrigatoriamente perdem. Nossa derrota foi ordinária: saímos como o Enéas da Copa.

A Copa do Mundo acabou e só na próxima eleição teremos outra, e somente lá lembraremos esta que passou, da mesma forma como somente lá lembraremos em quem votamos. E então se reciclarão os comerciais verde-amarelos, as propagandas de cerveja, as superstições, o ufanismo radical e todas as outras coisas que a televisão nos diz em época de Copa. Sentiremos que vale a pena ver de novo, e subitamente nos interessaremos sobre a escalação da Coréia do Sul ou a cultura da Turquia, se ela estiver no grupo do Brasil. Vamos ver uma reportagem de quatro minutos sobre o Jung Lee Pak, habilidoso meia-armador sul-coreano. Vai ter um grupo da morte. Vai ter bolão e surgirá um vidente: se não for o polvo, acreditaremos em um papagaio, num jogador de búzios, num matemático ou num pajé. Claro que vai haver mascote, grito de guerra, bordões e alguma coisa para todos comprarmos (como essa corneta chata), cada um com seu devido patrocinador oficial. Vamos achar natural as pessoas irem aos estádios com perucas, fantasias, maquiagem, taças de papelão e qualquer coisa colorida e luminosa. Será Copa do Mundo, afinal.

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A Copa do Mundo acabou e com ela a licença para dizer “ah, é Copa do Mundo” e assumir papéis ridículos. Caiu o pano. Claro que, como a próxima será no Brasil, a licença de dizer “ah, é Copa do Mundo” já foi incorporada por toda a elite público-privada do país para contornar licitações, superfaturar obras, construir elefantes brancos e acreditar no Ricardo Teixeira. Para quem está ganhando muito dinheiro com ela, a Copa já começou. Para quem vai vê-la da televisão, como se fosse na Rússia, ela está lá na frente, com uma placa laranja dizendo: “desculpe o transtorno, estamos roubando seus impostos”. Droga. Perdi meu ufanismo radical.

A grande Dúvida

Texto: Pedro Borba

Você acredita em deus? – Essa é uma daquelas perguntas que todo mundo já respondeu, mas ninguém sabe a resposta certa. A rigor, é uma decisão subjetiva e arbitrária – e, nesse sentido, não seria exagero chamá-la de opinião. Mas não foi por uma opinião que tanto se matou e morreu. A questão fundamental é que ninguém quer acreditar em um mito como ser supremo; ninguém quer confundir o arquiteto do universo com uma lenda, uma história da carochinha. Logo, a pergunta subjacente é – deus existe? Essa é talvez a pergunta mais importante, porque agrega em uma só as três básicas da filosofia: de onde viemos, quem somos e para onde vamos. A existência de deus não é uma mera questão de opinião.

Conheço três formas não-fundamentalistas de sustentar a existência de deus. Digo não-fundamentalistas porque há uma maneira, que eu entendo fundamentalista, segundo a qual a existência de deus é uma redundância. Deus é a existência. Deus é. O problema é que é fácil passar de um verbo intransitivo para uma pessoa intransigente. Contra esse argumento, meu texto não teria razão para ser escrito e terminaria aqui. Aliás, várias coisas muito melhores que esse texto não teriam tido razões para serem escritas, mas isso não vem ao caso.

Prossigamos: a primeira forma não-fundamentalista está derivada da pergunta “de onde viemos?”. Para conseguir derivar deus dessa pergunta, não tenho em mente um velho de barbas brancas criando o planeta em uma semana e tirando a primeira mulher da primeira costela masculina. Isso é uma metáfora. Antes da Bíblia, um sujeito chamado Aristóteles chegou à conclusão de que, se as coisas que existem têm causas para existir, precisa haver uma causa primeira, uma causa sem causa própria, uma causa original. Assim, o primum movens [primeiro movedor] é o criador da primeira coisa e da primeira causa. É o artífice, o demiurgo. Veja bem, explicar a gênese do universo por uma explosão de massa quente não nos diz como essa massa quente foi parar ali para ser explodida. Há uma grande interrogação sobre nossa origem, e, se decidirmos chamar de Deus a causa primária do que há, formularemos uma justificativa cosmológica necessária para que ele exista. Ele não é necessariamente um velho de barbas brancas, mas ele é o nome que damos para origem fundamental das coisas. Portanto, a existência das coisas me prova que sua causa necessária, deus, existe.

A segunda explicação deriva da pergunta “quem somos?”. Bom, somos seres humanos. Por isso, falíveis e imperfeitos. Temos consciência de nossa imperfeição enquanto espécie. Podemos às vezes ser desonestos; mentir e roubar; matar, inclusive com crueldade. Não somos bons como sabemos que é possível ser. Mas, ao mesmo tempo em que vivemos na imperfeição, as pessoas conseguem pensar no que, ao contrário disso, é eterno e perfeito. Sabemos que um ato é desonesto porque temos a ideia de honestidade em nossa cabeça. Sabemos o que é a bondade, mesmo vendo-a praticada escassas vezes. Acima de tudo, temos a profunda e soberana ideia de justiça, pela qual diferenciamos os atos justos e corretos daqueles que ofendem nosso senso ético. Dessa forma, por mais que nossa existência seja imperfeita, conseguimos em nossa mente configurar uma ideia absoluta de bem, de justiça, de solidariedade, de honestidade. Mas como explicar o fato de que um ser imperfeito gere um conceito de perfeição? Ora, é inconcebível que a ideia de perfeito seja originada pela imperfeição humana. Pelo contrário, ela deve precisamente ser gerada pela perfeição absoluta: deus. Nesse caso, Deus é o nome que damos à perfeição e com isso temos uma justificativa ontológica para sua existência. Extrai-se daí não mais a metáfora cosmológica, mas a intrigante ideia de um ser onipotente, onipresente e onisciente. Extrai-se daí também a possibilidade de deus como manancial ético, a partir da qual pode-se dizer que “seguir o caminho de deus” é ser justo, bom, honesto, solidário, piedoso. Essa forma de justificar a existência de deus coloca-o em nossas mentes, porque, se somos conscientes de nossa imperfeição, logramos acessar a perfeição, e, logo, deus existe. Se a primeira se inspirava em Aristóteles, esta é cartesiana e, no fim das contas, platônica.

A terceira, por fim, está derivada da pergunta “para onde vamos?”. Na sociedade moderna, essa interrogação superou as outras duas em importância, pois a cosmologia soa irrelevante e a ontologia, dada. Quando as coisas mudam muito rápido, o que as pessoas querem mesmo saber é o que vai acontecer conosco, seja amanhã, no ano que vem ou no último dos dias. E a filosofia, inebriada por suas próprias especulações, viu surgir de si a ciência moderna, um investimento prático e singelo de se obter novas respostas para o que vai acontecer – ou para o que é mais provável que aconteça.

Preocupado com o que aconteceria no juízo final cristão, um sujeito de espírito científico formulou o que ficou conhecida como Aposta de Pascal. Segundo ele, existem duas possibilidades factíveis para a existência de deus: ou ele existe, ou ele não existe. Diante disso, nós temos duas escolhas: ou nos portamos de acordo com as normas que ele prescreve, ou ignoramo-las e vivemos conforme nosso próprio desejo. Se vivemos a nosso bel-prazer e ele existir, seremos castigados no juízo final; se o fizermos e ele não existir, nada ocorrerá. Mas vejam bem: se, pelo contrário, nós seguimos a ética cristã em vida e ele existir, viveremos a eternidade no paraíso; se o fizermos e ele não existir, nada ocorrerá. Portanto, nossa escolha em terra se divide entre a obediência (em que os resultados possíveis são o paraíso e nada) e a desobediência (resultados possíveis: inferno e nada). Racionalmente, é preferível agir conforme as regras de deus, pois os resultados possíveis são mais favoráveis. A partir disso, pode-se afirmar que a existência de deus está garantida nos limites de nossa consciência e razão, através de uma justificativa escatológica.

Mas, no fim das contas, essas justificativas são convincentes? Provavelmente não estaremos vivos no fim das contas, e talvez ele nunca ocorra. O ateísmo existe porque essas justificativas são fatalmente limitadas, pois lidam com coisas que a rigor não sabemos. A metafísica sempre conviveu com intentos de extirpá-la.

A primeira forma de ateísmo que queria discutir corresponde ao que o fundamentalismo é para o teísmo. Nesse caso, Deus não é. É um ateísmo cínico e cético, não raro sarcástico. Presta-se a satirizar a crença em deus como algo banal, ingênuo ou boçal. O problema é que toma-se por deus o velho de barbas brancas no meio das nuvens, e constatar que esse deus não existe é mais banal e ingênuo do que esses ateus estariam dispostos a admitir. Deus não é um velhinho, nem possui longas barbas. Deus, como expus acima, é uma resposta forte para perguntas difíceis. Além de desrespeitoso, esse ateísmo é levemente estúpido.

Para além disso, podemos fazer a crítica ateia às três justificativas da existência de deus. Primeiro, em relação ao “de onde viemos”. A noção cosmológica de causa original parte de uma dúvida absoluta, pois não temos a menor ideia de qual ou de quem foi o pontapé inicial de nossa existência. Logo, ao repousar a ideia de deus sobre ela, deveríamos entender deus não como o absoluto perfeito, mas como eterna incerteza – o que contraria toda a tradição judaico-cristã. O deus cosmológico não existiria senão como o nome do que não sabemos e nunca viremos a saber. Em seus termos, essa justificativa comprova a necessidade de existência de um deus, mas ao defini-lo se descola de qualquer tradição monoteísta. Só comprova a existência de um deus em que ninguém acredita.

Para ser um “deus convencional”, ele precisaria ser mais que a causa original. A causa original deve ter existido, mas a justificativa cosmológica não garante que deus continue existindo e, além disso, permaneça atento à vida mundana. É uma justificativa mínima, descomprometida de forjar uma relação entre a pessoa e deus. Em outras palavras, dá nome a deus, mas não cria nenhuma fé.

Segundo, “o que somos”: nesse caso, o problema é criar demasiada fé. Ao partir de ideias abstratas de perfeição, a justificativa não se preocupa em garantir coerência entre elas, porque as supõe em um estado de pureza inatingível. As ideias de justiça e piedade, por exemplo, podem entrar em conflito. O mesmo pode acontecer com as ideias de bondade e honestidade. Na verdade, somos imperfeitos porque vivemos em um mundo que nos obriga constantemente a transformar princípios abstratos em escolhas. Em última instância, precisamos fazer escolhas porque vivemos. Um deus que pune é Bom? Um deus Justo dá clemência ao genocida? Um deus Universal pode ter um povo escolhido? Um deus Humilde não permite que se cultuem livremente outros deuses em outros templos?

A manutenção da pureza absoluta de conceitos abstratos tem como condição sua reclusão ao universo da especulação. Se deus concilia todos os atributos de bondade, justiça e clemência em estado puro e absoluto, é porque ele não age e não precisa escolher. Logo, ele não pune, nem recompensa, nem julga, nem cria, nem destrói. A condição para a existência de deus é que ele não exista senão como negação do que nós, humanos, somos – seres pensantes e agentes. Assim, alojando-se em nossa mente como oposto ideal do que nós precisamos ser, deus não significa muita coisa. Ele não pode ser onipotente, porque está preso, em nossas mentes, à ideia de perfeição que lhe deu origem. Em outras palavras, não haveria diferença substantiva entre o “caminho de deus” e o “caminho que eu considero o mais correto”.

Por fim, a terceira justificativa para a existência de deus opera em uma linguagem diferente. É quase um jogo de probabilidades. Nele, para induzir as escolhas, o Sr. Pascal cria uma falsa dicotomia: a de que deus, existindo, será um juiz implacável no final dos dias. Ora, não tenho razão necessária para pensar dessa forma. Entre as duas opções elencadas, há pelo menos uma terceira hipótese: deus existe e não possui nenhum ímpeto punitivo; logo, ele é indiferente a prescrições morais invocadas em seu nome.

Mais do que isso, Pascal infere escolhas a partir de resultados últimos. Ou seja, ele pressupõe que as pessoas devem escolher tendo em vista o horizonte pós-vida, por isso se cria a divisão entre nada/inferno e nada/paraíso. Mas, como diz a música do Amarante, “o caminho é o fim mais que chegar” – sim, essas escolhas implicam esforços em vida, de modo que minha decisão racional a respeito da existência de deus pode se pautar pelo caminho da vida mundana; isto é, pela pergunta: vale a pena os sacrifícios e os esforços da obediência em terra, levando em conta a incerteza a respeito do mundo pós-vida?

Para Pascal, o resultado neutro era a inexistência de julgamento final sobre as ações terrenas, consequência da ausência de deus. Como disse, sua preocupação maior é encontrar o reino dos céus após a morte, e a vida é o meio para tal. Na hipótese anti-Pascal, a vida é um fim em si mesmo – o que é um pressuposto de todo o ateísmo – e o resultado neutro (“0”) ocorre quando meu resultado pós-vida é condizente e justo com meu comportamento terreno. Isso ocorre em duas situações.

Primeira: deus existe e eu obedeço a suas regras, de modo que com razão sacrifiquei minha liberdade em terra, e por isso fui recompensado. Segunda: deus existe e me pune pelo comportamento sacrílego que apresentei, o que é justo e, assim, neutro (vida terrena “livre” com castigo pós-vida compatível). Contudo, para além dos resultados neutros, há um resultado positivo (vivo conforme meu arbítrio e não há julgamento ou punição, pois deus não existe) e outro negativo (vivo conforme a prescrição e não recebo o reino dos céus). Na hipótese anti-Pascal, os melhores resultados possíveis estão associados à “desobediência”, isto é, à plena liberdade na vida terrena – o que pode me fazer desejar a morte de deus, mas isso é outro assunto. Fiz duas tabelas para deixar mais confuso o que antes estava incompreensível:

Pascal

Obediência

Desobediência

Deus Existe

+

̶

Deus Inexiste

0

0

Anti-Pascal

Obediência

Desobediência

Deus Existe

0

0

Deus Inexiste

̶

+

Exagerando, eu poderia dizer que Pascal simula um jogo racional para persuadir da existência de deus, mas, ao pressupor a vida eterna e a instrumentalidade de nossa existência, já tem de deus pré-estabelecido. O que deve ser comprovado já é assumido de partida. Por isso nenhum ateu se converterá ao monoteísmo convencido por Pascal.

O que nos sobra? Nada. Melhor dizendo, nos sobra uma dúvida. Resta-nos uma insolúvel e persistente interrogação, para a qual todas as pretensões de ponto final se transformaram em vírgulas, e as vírgulas em reticências.

Segue esse incômodo fascinante.

Mantém-se essa angústia persistente, inconclusiva e interminável.

A propósito de angústias e incômodos, me lembrei de uma frase de Macedonio Fernández, escritor argentino amigo de Borges, citada por L.A. Fischer a propósito das vanguardas: “várias vezes comecei o estudo da metafísica, mas sempre me interrompeu a felicidade”. Ninguém gosta de angústias intermináveis. Eu tampouco. Mas, sem fugir para o não-tô-nem-aísmo, quero dizer que confesso a fé na dúvida. O ateísmo que se sustenta em certezas ou é estúpido, ou é hipócrita. A pessoa que consegue assegurar que deus não é ou não entende o que é deus, ou esconde suas dúvidas. Por outro lado, o teísmo que não se interroga, que não se angustia e que não vacila me parece bovino demais para merecer admiração.

Há uma passagem de Benjamin Constant, liberal católico, em que ele diz respeitar indivíduos letrados que neguem a religião, mas não consegue conceber um povo que o faça em seu conjunto. Em outras palavras, povos ateus seriam, para ele, “deserdados pela natureza”. Deserdados, completo eu, de uma resposta direta e convincente às perguntas fundamentais da existência – e mesmo da resposta contra a qual alguém possa se insurgir. A filosofia e a ciência moderna, cada uma a seu tempo, surgiram de sociedades apegadas à religião, e não de povos que a desconheciam. Contra o fundamentalismo religioso e o dogmatismo ateu, jaz minha religião da dúvida. Seu ethos é encarar as infinitas expressões de espiritualidade com um ponto de interrogação, e não com uma exclamação ou um ponto final. Deus talvez seja aquilo que não nos cabe em palavras, ou, como pensava John Lennon, seja o conceito com que medimos nossa dor. Talvez não seja um, mas vários. Talvez não seja um, mas uma. Talvez seja a explicação de nós mesmos, ou nada além uma palavra. E mesmo assim ele existe? Não sei, talvez a mais definitiva evidência possa ser a persistência com que tentamos compreendê-lo. Ou nosso fracasso em fazê-lo.

O Álbum de Figurinhas

Texto: Pedro Borba

Ilustração: Marcelo Viola

Memória sobre os álbuns de figurinha de futebol, uma compulsão doentia de 148,65%dos jovens do sexo masculino antes da puberdade.

No meu primeiro álbum, as figurinhas não eram auto-colantes. Além disso, ele
contava com presenças ilustres como Gheorghe Hagi, Valderrama e Roger Milla. Falo isso com alguma soberba, como quem suspira: “já sujei minha mão de cola Tenaz com o Maradona, mais respeito”. Tive uma carreira breve – de 94 a 98 –, mas que me rendeu um título mundial e dois campeonatos brasileiros. Mais do que isso, os álbuns me deram alguma perspectiva de realização pessoal naquelas séries escolares tão monótonas entre a alfabetização e o vestibular.

Comecei em 1994, com a Copa do Mundo dos EUA. Ali eu ainda era café-com-
leite e juntava as figurinhas com meu irmão, que vinha de uma fracassada temporada nofutebol europeu, com os álbuns incompletos dos campeonatos italianos de 92 e 93. Não completamos a Copa de 94, e claro que havia um problema etário: ele, muito velho para aquilo, não tinha muito interesse; eu, muito jovem, não tinha nenhuma experiência. Com essa derrota no currículo e um pouco mais de traquejo, comecei minha carreira solo em 1996 com o campeonato brasileiro. Completaria a coleção e o Grêmio seria campeão, o que vale uma dupla vitória (em 1994, o título mais importante eu perdera). A última figurinha faltante – o Paulo da Pinta, um centro-médio medíocre do Criciúma – seria como o gol do Aílton aos 38 minutos do segundo tempo no Olímpico.

O gol da vitória. Ainda me lembro do ritual meticuloso de descolagem do adesivo do papel-suporte, o enquadramento da figurinha ao box “Paulo da Pinta”, e a pressão suave e deslizante para a colagem. Por fim, os dedos médio e indicador fazem juntos um vai-e-vem sobre o precioso auto-colante para assegurar que não ficariam bolhas ou marcas de ar na última figurinha do álbum. E, claro, a ansiedade de chegar no dia seguinte à escola, com o álbum completo debaixo do braço e um sorriso aberto de orelha a orelha.

Eu completaria também o Brasileirão de 1997, mas o Grêmio infelizmente
não acompanharia meu bicampeonato. Evidentemente, nunca recorri ao procedimento torpe de enviar cartas para a editora, solicitando os “cromos faltantes” – esse era o expediente mais desonroso para um colecionador de figurinhas que se preze. Era como ir chorar na saia da mamãe. Ora bolas, figurinha não se recebe pelo correio. Figurinha só sai da banca, do bafo ou da troca. Para piorar, eles ainda ofereciam um sorteio de prêmios para quem enviasse à editora o álbum completo, como se, primeiro, esse tipo de
estímulo fosse necessário, e, segundo, como se um sorteio do que quer que fosse valesse o símbolo da coleção, o álbum completo de figurinhas, histórias e orgulho. Para mim as crianças que enviavam os álbuns para o sorteio eram as mesmas que pediam os “cromos faltantes”. Prefiro não saber onde elas andam hoje.

É inegável que aqueles anos escolares entregues à Panini legam uma formação
intelectual e pessoal, materializados nos álbuns que sobreviveram ao desapego e aos ímpetos da adolescência para entrar solenemente na vida adulta sob a insígnia da nostalgia. Como esquecer, por exemplo, da dupla de ataque “Oséas-Paulo Rink” no Atlético-PR, ou da igualmente lendária Dinei-Aílton no Guarani de 96? Ou então do Galeano no meio de campo do Palmeiras, que acabou virando um sinônimo do trabalho de formiga do volante marcador, suado e violento. Qualquer interessado em futebol sabe que atrás de todo Djalminha tem que ter um Galeano para dar cobertura. Sem malícia, por favor, porque estamos falando da infância.

Eu acho que existem três motivos para que as coleções de figurinhas sejam uma
prática divertida e, às vezes, obsessiva. O primeiro é jogar bafo. Que não é só bater as figurinhas. Tem que ter a galera olhando, a assoprada na mão, o atraso para a aula. E a figurinha apostada faz toda a diferença, algo como: “se tu colocar o mascote do Bahia eu boto cinco”, “o escudo do São Paulo pelo bolo”, tá me entendendo?

Cor

O segundo motivo é a troca de figurinhas. Cria-se um mercado paralelo de
figurinhas repetidas, com seus respectivos valores de troca. Distintivos e mascotes
são raros; buchas de canhão para jogar bafo não valem nada. E, claro, como em todo mercado paralelo, há oportunidades extraordinárias: em troca do Paulo da Pinta (uma figurinha outrora banal), ofereci ao sujeito todas as figuras repetidas que ainda tinha – algumas centenas, talvez. Era a última que faltava. Quem haveria de dizer que foi uma troca desleal para qualquer das partes?

O terceiro motivo é a compra de pacotinhos na banca. Além da expectativa e
da surpresa, esse momento geralmente envolve um pouco de transgressão: desviar o troco do pão, trocar o lanche por uns pacotinhos, etc. São todos artifícios válidos – e, digamos, necessários – para o colecionador de figurinhas bem-sucedido.

Por esses três momentos, o bafo, a troca e a compra, os álbuns de futebol
acabam sendo uma etapa crucial da formação desses jovens como seres humanos. Será através desses três momentos que eles terão o primeiro contato com os jogos de azar, com o comércio informal e com o consumismo desenfreado (com um toque de desonestidade) – três coisas que a maioria deles levará consigo para o resto da vida.