A grande Dúvida

Texto: Pedro Borba

Você acredita em deus? – Essa é uma daquelas perguntas que todo mundo já respondeu, mas ninguém sabe a resposta certa. A rigor, é uma decisão subjetiva e arbitrária – e, nesse sentido, não seria exagero chamá-la de opinião. Mas não foi por uma opinião que tanto se matou e morreu. A questão fundamental é que ninguém quer acreditar em um mito como ser supremo; ninguém quer confundir o arquiteto do universo com uma lenda, uma história da carochinha. Logo, a pergunta subjacente é – deus existe? Essa é talvez a pergunta mais importante, porque agrega em uma só as três básicas da filosofia: de onde viemos, quem somos e para onde vamos. A existência de deus não é uma mera questão de opinião.

Conheço três formas não-fundamentalistas de sustentar a existência de deus. Digo não-fundamentalistas porque há uma maneira, que eu entendo fundamentalista, segundo a qual a existência de deus é uma redundância. Deus é a existência. Deus é. O problema é que é fácil passar de um verbo intransitivo para uma pessoa intransigente. Contra esse argumento, meu texto não teria razão para ser escrito e terminaria aqui. Aliás, várias coisas muito melhores que esse texto não teriam tido razões para serem escritas, mas isso não vem ao caso.

Prossigamos: a primeira forma não-fundamentalista está derivada da pergunta “de onde viemos?”. Para conseguir derivar deus dessa pergunta, não tenho em mente um velho de barbas brancas criando o planeta em uma semana e tirando a primeira mulher da primeira costela masculina. Isso é uma metáfora. Antes da Bíblia, um sujeito chamado Aristóteles chegou à conclusão de que, se as coisas que existem têm causas para existir, precisa haver uma causa primeira, uma causa sem causa própria, uma causa original. Assim, o primum movens [primeiro movedor] é o criador da primeira coisa e da primeira causa. É o artífice, o demiurgo. Veja bem, explicar a gênese do universo por uma explosão de massa quente não nos diz como essa massa quente foi parar ali para ser explodida. Há uma grande interrogação sobre nossa origem, e, se decidirmos chamar de Deus a causa primária do que há, formularemos uma justificativa cosmológica necessária para que ele exista. Ele não é necessariamente um velho de barbas brancas, mas ele é o nome que damos para origem fundamental das coisas. Portanto, a existência das coisas me prova que sua causa necessária, deus, existe.

A segunda explicação deriva da pergunta “quem somos?”. Bom, somos seres humanos. Por isso, falíveis e imperfeitos. Temos consciência de nossa imperfeição enquanto espécie. Podemos às vezes ser desonestos; mentir e roubar; matar, inclusive com crueldade. Não somos bons como sabemos que é possível ser. Mas, ao mesmo tempo em que vivemos na imperfeição, as pessoas conseguem pensar no que, ao contrário disso, é eterno e perfeito. Sabemos que um ato é desonesto porque temos a ideia de honestidade em nossa cabeça. Sabemos o que é a bondade, mesmo vendo-a praticada escassas vezes. Acima de tudo, temos a profunda e soberana ideia de justiça, pela qual diferenciamos os atos justos e corretos daqueles que ofendem nosso senso ético. Dessa forma, por mais que nossa existência seja imperfeita, conseguimos em nossa mente configurar uma ideia absoluta de bem, de justiça, de solidariedade, de honestidade. Mas como explicar o fato de que um ser imperfeito gere um conceito de perfeição? Ora, é inconcebível que a ideia de perfeito seja originada pela imperfeição humana. Pelo contrário, ela deve precisamente ser gerada pela perfeição absoluta: deus. Nesse caso, Deus é o nome que damos à perfeição e com isso temos uma justificativa ontológica para sua existência. Extrai-se daí não mais a metáfora cosmológica, mas a intrigante ideia de um ser onipotente, onipresente e onisciente. Extrai-se daí também a possibilidade de deus como manancial ético, a partir da qual pode-se dizer que “seguir o caminho de deus” é ser justo, bom, honesto, solidário, piedoso. Essa forma de justificar a existência de deus coloca-o em nossas mentes, porque, se somos conscientes de nossa imperfeição, logramos acessar a perfeição, e, logo, deus existe. Se a primeira se inspirava em Aristóteles, esta é cartesiana e, no fim das contas, platônica.

A terceira, por fim, está derivada da pergunta “para onde vamos?”. Na sociedade moderna, essa interrogação superou as outras duas em importância, pois a cosmologia soa irrelevante e a ontologia, dada. Quando as coisas mudam muito rápido, o que as pessoas querem mesmo saber é o que vai acontecer conosco, seja amanhã, no ano que vem ou no último dos dias. E a filosofia, inebriada por suas próprias especulações, viu surgir de si a ciência moderna, um investimento prático e singelo de se obter novas respostas para o que vai acontecer – ou para o que é mais provável que aconteça.

Preocupado com o que aconteceria no juízo final cristão, um sujeito de espírito científico formulou o que ficou conhecida como Aposta de Pascal. Segundo ele, existem duas possibilidades factíveis para a existência de deus: ou ele existe, ou ele não existe. Diante disso, nós temos duas escolhas: ou nos portamos de acordo com as normas que ele prescreve, ou ignoramo-las e vivemos conforme nosso próprio desejo. Se vivemos a nosso bel-prazer e ele existir, seremos castigados no juízo final; se o fizermos e ele não existir, nada ocorrerá. Mas vejam bem: se, pelo contrário, nós seguimos a ética cristã em vida e ele existir, viveremos a eternidade no paraíso; se o fizermos e ele não existir, nada ocorrerá. Portanto, nossa escolha em terra se divide entre a obediência (em que os resultados possíveis são o paraíso e nada) e a desobediência (resultados possíveis: inferno e nada). Racionalmente, é preferível agir conforme as regras de deus, pois os resultados possíveis são mais favoráveis. A partir disso, pode-se afirmar que a existência de deus está garantida nos limites de nossa consciência e razão, através de uma justificativa escatológica.

Mas, no fim das contas, essas justificativas são convincentes? Provavelmente não estaremos vivos no fim das contas, e talvez ele nunca ocorra. O ateísmo existe porque essas justificativas são fatalmente limitadas, pois lidam com coisas que a rigor não sabemos. A metafísica sempre conviveu com intentos de extirpá-la.

A primeira forma de ateísmo que queria discutir corresponde ao que o fundamentalismo é para o teísmo. Nesse caso, Deus não é. É um ateísmo cínico e cético, não raro sarcástico. Presta-se a satirizar a crença em deus como algo banal, ingênuo ou boçal. O problema é que toma-se por deus o velho de barbas brancas no meio das nuvens, e constatar que esse deus não existe é mais banal e ingênuo do que esses ateus estariam dispostos a admitir. Deus não é um velhinho, nem possui longas barbas. Deus, como expus acima, é uma resposta forte para perguntas difíceis. Além de desrespeitoso, esse ateísmo é levemente estúpido.

Para além disso, podemos fazer a crítica ateia às três justificativas da existência de deus. Primeiro, em relação ao “de onde viemos”. A noção cosmológica de causa original parte de uma dúvida absoluta, pois não temos a menor ideia de qual ou de quem foi o pontapé inicial de nossa existência. Logo, ao repousar a ideia de deus sobre ela, deveríamos entender deus não como o absoluto perfeito, mas como eterna incerteza – o que contraria toda a tradição judaico-cristã. O deus cosmológico não existiria senão como o nome do que não sabemos e nunca viremos a saber. Em seus termos, essa justificativa comprova a necessidade de existência de um deus, mas ao defini-lo se descola de qualquer tradição monoteísta. Só comprova a existência de um deus em que ninguém acredita.

Para ser um “deus convencional”, ele precisaria ser mais que a causa original. A causa original deve ter existido, mas a justificativa cosmológica não garante que deus continue existindo e, além disso, permaneça atento à vida mundana. É uma justificativa mínima, descomprometida de forjar uma relação entre a pessoa e deus. Em outras palavras, dá nome a deus, mas não cria nenhuma fé.

Segundo, “o que somos”: nesse caso, o problema é criar demasiada fé. Ao partir de ideias abstratas de perfeição, a justificativa não se preocupa em garantir coerência entre elas, porque as supõe em um estado de pureza inatingível. As ideias de justiça e piedade, por exemplo, podem entrar em conflito. O mesmo pode acontecer com as ideias de bondade e honestidade. Na verdade, somos imperfeitos porque vivemos em um mundo que nos obriga constantemente a transformar princípios abstratos em escolhas. Em última instância, precisamos fazer escolhas porque vivemos. Um deus que pune é Bom? Um deus Justo dá clemência ao genocida? Um deus Universal pode ter um povo escolhido? Um deus Humilde não permite que se cultuem livremente outros deuses em outros templos?

A manutenção da pureza absoluta de conceitos abstratos tem como condição sua reclusão ao universo da especulação. Se deus concilia todos os atributos de bondade, justiça e clemência em estado puro e absoluto, é porque ele não age e não precisa escolher. Logo, ele não pune, nem recompensa, nem julga, nem cria, nem destrói. A condição para a existência de deus é que ele não exista senão como negação do que nós, humanos, somos – seres pensantes e agentes. Assim, alojando-se em nossa mente como oposto ideal do que nós precisamos ser, deus não significa muita coisa. Ele não pode ser onipotente, porque está preso, em nossas mentes, à ideia de perfeição que lhe deu origem. Em outras palavras, não haveria diferença substantiva entre o “caminho de deus” e o “caminho que eu considero o mais correto”.

Por fim, a terceira justificativa para a existência de deus opera em uma linguagem diferente. É quase um jogo de probabilidades. Nele, para induzir as escolhas, o Sr. Pascal cria uma falsa dicotomia: a de que deus, existindo, será um juiz implacável no final dos dias. Ora, não tenho razão necessária para pensar dessa forma. Entre as duas opções elencadas, há pelo menos uma terceira hipótese: deus existe e não possui nenhum ímpeto punitivo; logo, ele é indiferente a prescrições morais invocadas em seu nome.

Mais do que isso, Pascal infere escolhas a partir de resultados últimos. Ou seja, ele pressupõe que as pessoas devem escolher tendo em vista o horizonte pós-vida, por isso se cria a divisão entre nada/inferno e nada/paraíso. Mas, como diz a música do Amarante, “o caminho é o fim mais que chegar” – sim, essas escolhas implicam esforços em vida, de modo que minha decisão racional a respeito da existência de deus pode se pautar pelo caminho da vida mundana; isto é, pela pergunta: vale a pena os sacrifícios e os esforços da obediência em terra, levando em conta a incerteza a respeito do mundo pós-vida?

Para Pascal, o resultado neutro era a inexistência de julgamento final sobre as ações terrenas, consequência da ausência de deus. Como disse, sua preocupação maior é encontrar o reino dos céus após a morte, e a vida é o meio para tal. Na hipótese anti-Pascal, a vida é um fim em si mesmo – o que é um pressuposto de todo o ateísmo – e o resultado neutro (“0”) ocorre quando meu resultado pós-vida é condizente e justo com meu comportamento terreno. Isso ocorre em duas situações.

Primeira: deus existe e eu obedeço a suas regras, de modo que com razão sacrifiquei minha liberdade em terra, e por isso fui recompensado. Segunda: deus existe e me pune pelo comportamento sacrílego que apresentei, o que é justo e, assim, neutro (vida terrena “livre” com castigo pós-vida compatível). Contudo, para além dos resultados neutros, há um resultado positivo (vivo conforme meu arbítrio e não há julgamento ou punição, pois deus não existe) e outro negativo (vivo conforme a prescrição e não recebo o reino dos céus). Na hipótese anti-Pascal, os melhores resultados possíveis estão associados à “desobediência”, isto é, à plena liberdade na vida terrena – o que pode me fazer desejar a morte de deus, mas isso é outro assunto. Fiz duas tabelas para deixar mais confuso o que antes estava incompreensível:

Pascal

Obediência

Desobediência

Deus Existe

+

̶

Deus Inexiste

0

0

Anti-Pascal

Obediência

Desobediência

Deus Existe

0

0

Deus Inexiste

̶

+

Exagerando, eu poderia dizer que Pascal simula um jogo racional para persuadir da existência de deus, mas, ao pressupor a vida eterna e a instrumentalidade de nossa existência, já tem de deus pré-estabelecido. O que deve ser comprovado já é assumido de partida. Por isso nenhum ateu se converterá ao monoteísmo convencido por Pascal.

O que nos sobra? Nada. Melhor dizendo, nos sobra uma dúvida. Resta-nos uma insolúvel e persistente interrogação, para a qual todas as pretensões de ponto final se transformaram em vírgulas, e as vírgulas em reticências.

Segue esse incômodo fascinante.

Mantém-se essa angústia persistente, inconclusiva e interminável.

A propósito de angústias e incômodos, me lembrei de uma frase de Macedonio Fernández, escritor argentino amigo de Borges, citada por L.A. Fischer a propósito das vanguardas: “várias vezes comecei o estudo da metafísica, mas sempre me interrompeu a felicidade”. Ninguém gosta de angústias intermináveis. Eu tampouco. Mas, sem fugir para o não-tô-nem-aísmo, quero dizer que confesso a fé na dúvida. O ateísmo que se sustenta em certezas ou é estúpido, ou é hipócrita. A pessoa que consegue assegurar que deus não é ou não entende o que é deus, ou esconde suas dúvidas. Por outro lado, o teísmo que não se interroga, que não se angustia e que não vacila me parece bovino demais para merecer admiração.

Há uma passagem de Benjamin Constant, liberal católico, em que ele diz respeitar indivíduos letrados que neguem a religião, mas não consegue conceber um povo que o faça em seu conjunto. Em outras palavras, povos ateus seriam, para ele, “deserdados pela natureza”. Deserdados, completo eu, de uma resposta direta e convincente às perguntas fundamentais da existência – e mesmo da resposta contra a qual alguém possa se insurgir. A filosofia e a ciência moderna, cada uma a seu tempo, surgiram de sociedades apegadas à religião, e não de povos que a desconheciam. Contra o fundamentalismo religioso e o dogmatismo ateu, jaz minha religião da dúvida. Seu ethos é encarar as infinitas expressões de espiritualidade com um ponto de interrogação, e não com uma exclamação ou um ponto final. Deus talvez seja aquilo que não nos cabe em palavras, ou, como pensava John Lennon, seja o conceito com que medimos nossa dor. Talvez não seja um, mas vários. Talvez não seja um, mas uma. Talvez seja a explicação de nós mesmos, ou nada além uma palavra. E mesmo assim ele existe? Não sei, talvez a mais definitiva evidência possa ser a persistência com que tentamos compreendê-lo. Ou nosso fracasso em fazê-lo.

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