Futebol Total

Texto: Pedro Borba

Ilustração: Marcelo Viola

Guardiola não é mais o treinador do Barcelona. Se vivo, acho que em 2030 vou falar que vi o Barcelona que Gardiola assumiu em 2007, em seu primeiro emprego como treinador, e entregou cinco anos depois com um punhado de canecos a mais. Foram cinco anos que refundaram minha forma de pensar o futebol, porque para mim foi uma geração de futebol total. Nos anos em que o Messi passou a ser um semi-deus e o melhor jogador do mundo, era o Guardiola que estava no banco. Sem Messi e sem Guardiola, o Barcelona ganhou a Copa do Mundo com a camisa da Espanha. Nesses fatídicos cinco anos (2007-2012), a Espanha ganhou tudo como nunca havia ganhado em sua história. E acaba de ganhar a Eurocopa, com jogadores e a filosofia do Barcelona, só que sem seu o técnico (Guardiola), sem o melhor jogador do mundo (Messi), sem o melhor atacante da Espanha (Villa) e sem o capitão do time (Puyol). E não só ganharam; foi quatro a zero e um banho de bola na final.

Quando todos achavam que futebol se ganharia na academia (e o Muricy Ramalho queria um Inter de “altos e fortes”, sem comentários), o Barcelona tinha lugar para uns biotipos bem estranhos, como o Iniesta e o Busquets, e vencia não no físico, mas no conjunto. Na musculatura coletiva. Quando todo mundo monta um time de quatro volantes, eles atacam com seis, sete jogadores. O mesmo time que descobriu que o jeito mais eficiente de marcar um adversário capaz simplesmente é mantendo-o sem a bola (disse Fábregas antes da final contra o Santos, a propósito do “imarcável” Neymar). E consegue manter a bola dando cerca de quatro vezes mais passes certos por jogo do que seus adversários.

Agora que o Camp Nou está em crise, e Guardiola abandonou o comando da equipe, parece um bom momento para relembrar alguns aspectos desses cinco anos.

Começando pelo mais bizarro, uma revista estadunidense elegeu Messi uma das cem pessoas mais influentes do mundo, sendo que ele nunca abre a boca.

Mas com vinte e quatro anos ele é a pessoa que mais fez gols com a camisa do Barcelona na história do clube. E, quando todos os clubes pregavam que artilheiro teria que ter o biótipo de um lutador de UFC, o rapaz é atarracado daquele jeito, com um problema hormonal de crescimento herdado da adolescência.

A máxima de que o último toque está no pé do centroavante veio abaixo. Messi é uma mistura de um meia-ofensivo com o ponta (ah, o antigo ponta…) pela esquerda. A particularidade de Lionel Messi no Barça de Guardiola é que ele não era só técnica, mas um papel tático muito particular, raro. A associação comum com o Cristiano Ronaldo (além da rivalidade Barça-Real) é que eles são espécimes raros desse tipo de atacante de velocidade, que conduz a jogada na diagonal, uma diagonal fulminante. E, quanto à finalização, o Messi tem outro diferencial óbvio. Quem já o viu cara a cara com o goleiro percebe que o argentino não “chuta” a gol, ele desloca o goleiro da bola. A diferença é sutil, não sei se é clara. Seja tocando a bola por cima (que virou sua marca), seja atrasando uma passada, seja fintando para um lado e colocando no outro, é como se Messi cobrasse um pênalti com bola rolando.

Xavi e Iniesta viraram sinônimo de posse de bola. Eles conseguiram fazer uma simbiose entre passe e drible, porque o drible não serve para ultrapassar, mas para abrir espaço, e o bom passe é uma forma de drible em que quem ultrapassa é a bola, não o driblador. Além disso, eu acho impressionante que, nem sempre mas com frequência, a equipe adversária sai com marcação fechada, e joga três caras para abafar o Iniesta (com uma sobredose de coerção, eventualmente) e a bola sai daquele tumulto em direção a um jogador do Barça, ou o juiz apita falta…

A finta abre espaço e o passe dribla, ou o contrário, enfim. Esses tempos estava discutindo no Bar do Tota sobre a melhor forma de jogar contra o Barcelona. Meu interlocutor insistia que tinha que marcar pressão, sufocar a saída, encurtar o espaço. Eu lhe dizia que os riscos de sair com seis jogadores para o campo de defesa do Barça é que, por aritmética básica, vão ficar quatro na defesa, e isso é, digamos, meio gol para eles. A chance de tomar a bola no campo de defesa depende fundamentalmente de um erro de Puyol ou Piquet (que são, em termos relativos, os menos hábeis), e a reação defensiva do Barça costuma ser recuar Iniesta e Xavi para a defesa, para facilitar a saída de bola. É interessante ver aquela estatística de presença em campo (apresentada como uma mancha em diferentes cores, dependendo da incidência do jogador na área), em que os meias ofensivos do Barcelona cobrem uma área muito maior, ou seja, tem uma presença mais difusa. A função de Xavi e Iniesta não é definida no espaço, mas na tática: eles precisam lubrificar o toque de bola onde a bola estiver, e para isso se revezam. Eles são meias não só porque estão no meio do campo, mas porque são os “meios” por onde o jogo vai passar. Voltando ao problema de como jogar contra o Barcelona, eu defendia que a melhor saída ainda é a do Mourinho (porque funcionou mais de uma vez): duas linhas de quatro na defesa e contra-ataque rápido pelos lados, ou gol de boa parada. Em outras palavras, não se joga contra eles do mesmo jeito que eles jogam contra ti. Eles ficam com a bola para que tu não ataques. E tu deixa a bola com eles sem nenhum espaço para que te ataquem.

Como não vou ficar comentando jogador por jogador, queria só pontuar algumas coisas sobre o coletivo. Um pressuposto óbvio e nem sempre valorizado é que só é possível jogar coletivamente se os passes são acertados (e, sobre isso, deem uma olhada nesse vídeo).

Depois que eu consigo acertar passes, eu preciso que meu time se mexa sem a bola, para que consigamos avançar trocando passes. Meu argumento é de que esse é a dinâmica do futebol de salão, e que o Barça é uma equipe de salão de onze jogadores, que joga em um campo maior. Para situar, vejam isso:

A lógica dominante no futebol de campo é que a equipe se distribui taticamente (4-4-2, 3-5-2, 4-3-3) e a função do passe é levar a bola a quem esteja mais avançado (o volante precisa receber do zagueiro, e levar ao meia, e o meia ao atacante, e o atacante ao gol, sendo os laterais a via de escape pelo flanco). O problema dessa lógica é que ela é estática. Ao privilegiar o movimento sem a bola, eu posso atacar com o zagueiro tranquilamente. A “tática”, se entendida como aquela sequencia de três números, perde o sentido. Ao privilegiar o movimento sem a bola, eu avanço com a bola. Ao privilegiar o movimento sem a bola, eu elevo o fundamento “passe” acima do fundamento “lançamento”. Na lógica estática, o lançamento é uma forma de atalhar o caminho. Fora dela, o lançamento é uma forma de perder a bola. E por isso recuam-se os meias para sair jogando. E, fazendo isso, o Barcelona de Pep Guardiola teve mais posse de bola tem todos os jogos que jogou.

Elevando o fundamento “passe” acima do “lançamento”, a equipe consegue atacar pelo meio da defesa, perfurando-a em direção ao gol. Essa é evidentemente a forma mais incisiva de atacar. Apólogos do lançamento, cujo exemplar que sempre me vem à cabeça é o Batista, insistem e continuarão insistindo na jogada “pelos lados” ou “pelos flancos”, na necessidade de “escapar do congestionamento do meio”.  E com isso estarão defendendo sub-repticiamente o balão para a área, o chuveirinho. Dificilmente consigo imaginar que o Iniesta veja um congestionamento na defesa, pela clara razão de que em um congestionamento ninguém se mexe.

Seremos órfãos desse time. Do futebol jogado com o pé. Do gol feito com o time inteiro. Do domínio total do jogo. Mais do que tudo, seremos órfãos dessa ideia romântica e irresistível de que futebol pode ser belo sem ser individualista, pode ser artístico sem ser caricato, pode ser estratégico sem ser mecânico e pode ser coletivo sem ser chato. Quando se invocar o domínio de posse de bola, o toque curto e o ataque pelo meio, lembraremos de Xavi, Iniesta, Fábregas, Messi e Villa. O Barça pode ficar para trás, mas esse futebol nós, seus órfãos, seguiremos acalentando. Como sebastianistas esperaremos seu retorno.

Vídeos sobre o Barcelona

 

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