A poeira que cobre o tempo e o tempo que nos descobre

“Mas o trem de casas-vagões
Passa ou é passado por?
Como poder distinguir
Do passado o passador?”

João Cabral de Melo Neto

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Texto: Pedro Borba // Ilustração: Marcelo Viola

Ela não vem. Esse pensamento ia e vinha à minha cabeça ao longo dos quarenta e dois minutos em que acompanhei os ponteiros deslizarem sobre os números de ferro do único relógio de que dispunha, o da estação. Sim, estou em uma estação de trem quase vazia, sem vento suficiente para mover a poeira e sem sol suficiente para esquentar a alma.

Quando os seres humanos compram um bilhete de trem, eles escolhem seu destino. Aliás, não faz nenhum sentido comprar um bilhete sem definir anteriormente o rumo da viagem. O mesmo não acontece com o amor que cultivam esses mesmos seres humanos. Ninguém pergunta o destino antes da partida, e somente por esse detalhe decisivo é que duas pessoas que partem em um mesmo vagão podem chegar a lugares tão distantes. Tampouco existem estações no percurso. No amor, não há nenhum ponto intermediário, não há um ponto de controle. Curiosa viagem sem destino e sem controle para a qual teimamos em comprar bilhetes e, depois da decepção do rumo perdido, convencer-nos de que o problema consistia em um casual erro de execução, e não na natureza própria da viagem.

Um velho que vivia nessa estação dizia com frequência que não são os trens que se atrasam, são os relógios que se adiantam. Olhando aquele monótono relógio de ferro, com cerca de um metro de diâmetro, chego à conclusão inabalável de que meus relógios têm errado há anos, sem que em nenhum momento antes do presente eu tenha sido capaz de diagnosticar sua pressa. Talvez não o tenha sido porque meu tempo corria no ritmo antecipado de meus relógios, e talvez por isso me veja agora há quarenta e quatro minutos sem ver trem algum chegar a essa plataforma. Se isso for mesmo assim, talvez tenha que esperar por anos até que eu volte ao tempo em que passam os trens, ou em que deve passar o trem que aguardo. Olho para o relógio de ferro que jocosamente saboreia o golpe que me aplicou.

À exceção do velho que aqui vivia, e que hoje já não vive, as pessoas somente estão em estações de trem, que são locais por definição transitórios, fugazes. Não é à toa que nos chamam passageiros. Nesses locais desconfortáveis e poeirentos, as pessoas só estão para deixar de estar. Não há o que fazer em uma estação de trem além de esperar o trem para poder abandonar a estação.

No entanto, só me dei conta de onde essa transitoriedade podia chegar quando tive vontade de me atirar na frente do trem em movimento. E não foram poucas vezes. Na primeira, eu era criança e fiquei estupefato com aquele ponto móvel que, ainda distante, emitia um poderoso ruído e penetrava a noite com suas luzes; vi-o aproximar-se, hipnotizando-me, avolumando-se na mesma velocidade constante com que se deslocava. Em alguns instantes, tinha diante de mim um monstro imenso, com sua diabólica máscara de ferro e uma torre que expulsava fumaça negra de suas entranhas. No átimo em que a coisa cruzou por minha frente, e eu me encontrava na linha da plataforma, sem nada que me detivesse, a vontade de entregar-se ao monstro foi potente e vertiginosa. Desde então, sempre sinto uma pequena vertigem ao ver o trem passar. Posso dizer com segurança que, naquele átimo, estive no limiar da vida, e o vento que me gelou a alma era o sopro da morte. Essa é a verdadeira transitoriedade que a estação me faz sentir. Não é qualquer lugar que me coloca o convite da morte ao alcance de um passo.

Por uma ironia alheia à minha vontade, estou há quarenta e sete minutos esperando o retorno desse convite. E espero o trem já esperando que dentro do trem ela não venha, e sabendo que, se vier, ela não espera que eu a espero. Talvez, se o trem dela aparecer, eu resolva aceitar pela primeira vez o convite. Contudo, no fundo me conformo que nunca terei essa coragem, pois já sei que a minha foi quase insuficiente para que eu viesse esperá-la sem que ela esperasse por isso. Em uma estação de trem cheia de poeira, um homem é capaz de enxergar seus medos, sua pusilanimidade, sua insegurança; é capaz de ver-se refém de um velho relógio de ferro que marca seis horas e quarenta e oito minutos; é capaz até de reconhecer seus erros. Mas é e será incapaz de aprimorar-se. Pelo menos enquanto a estação continuar silenciosa como está, ou enquanto o movimento da estação continuar limitando-se ao ponteiro de ferro, ou enquanto o único vento que soprar seja tão débil que sequer mova a poeira do chão da estação. Será forçosamente incapaz enquanto o único pensamento que lhe vem e vai à cabeça é o de que ela não vem.

Essa não é uma história sobre ponteiros. É uma história sobre reticências. Em uma narrativa inacabada, interessam-me os três pontos perfilados como vagões, que subsituem o não dito pela sensação de ansiosa incompletude, por aquela vaga e ambígua reticência que deixa a sentença em aberto. As reticências são um mecanismo pelo qual o autor, por omissão voluntária, abre seu texto para que este seja completo por quem lê, e assim a ambiguidade ganhe sentido unívoco, pelo menos por um instante. Afinal, o que é o amor senão a decisão de reticenciar nossa vida para que outrem a complete, pelo menos por um instante. O que é senão a omissão voluntária em relação ao nosso destino, embarcado em um vagão irresponsável e inconstante. O que são essas reticências perfiladas ao final senão a expectativa que alguém as preencha de significado e as transforme em ponto final. Mesmo que essa expectativa dure intermináveis cinquenta e dois minutos arbitrados sarcasticamente por um relógio de ferro em uma estação de trem quase vazia. Porque o que é uma estação de trem senão o lugar atemporal das esperas?

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