Texto: Pedro Borba
Ilustração: Marcelo Viola
Resposta ao texto de Shana Sudbrack, chamado “O problema com as cotas”, publicado em seu blog. A propósito dessa questão, espera-se que o Conselho Universitário da UFRGS delibere em sua próxima reunião ordinária sobre a renovação de seu programa de ações afirmativas.
Olá Shana,
Li seu texto e acho que entendi o argumento, ainda que não concorde com ele. Vamos abrir o diálogo:
Pelo que entendi, a sequência lógica é: (1) hoje o sistema de ingresso na universidade pública está ruim, mas a política de cotas é ainda pior; (2) ela é pior porque seus critérios são falhos; (3) ela é uma medida paliativa, tapa-buraco, que desconsidera o investimento em educação básica; (4) para se criar uma política séria, precisaríamos de melhores critérios, como renda familiar per capita; (5) a política de cotas é eleitoreira.
Bueno, começando pelo começo, concordo contigo que o sistema de ingresso na universidade pública é problemático, porque o vestibular cria uma seletividade informal de renda (como tu mesmo dizes, pela indústria dos cursinhos e dos colégios privados “aprovadores”). A questão a saber é onde entram as cotas. Por mais que tu use a expressão “também são falhas”, o que tu quer dizer é que as cotas “são mais falhas” do que o vestibular, pois tu não os trata com equivalência. A rigor, a discordância com os critérios das ações afirmativas te conduz a negar a política pública (“extremamente mal pensada”), responsabilizando-a pela criação de “novas desigualdades”. O que me interessa por enquanto é separar o aspecto moral do operacional, isto é, a desejabilidade de ações afirmativas (moral) dos critérios utilizados para implementá-las (operacional). Se diagnosticamos os problemas do sistema atual, podemos trabalhar para melhorá-lo. Se o consideramos ilegítimo, não há debate operacional possível.
Quanto ao aspecto moral, o argumento da criação de novas desigualdades me parece fraco porque o seu contrário parece mais convincente: ao criar uma política de reservas de vagas, estamos tentando contornar as assimetrias sociais às quais o vestibular é insensível, e por isso excludente. Estamos tentando agir sobre a seletividade informal que verificamos. Nosso objetivo é minorar as deficiências que estão expressas no início do teu argumento e com que concordo. Isso não quer dizer que vá funcionar (operacional). Por enquanto estamos no terreno da hipótese. O que quero contrapor é que não há uma adversativa (como tu colocas “mas as cotas também são falhas”, criando entre vestibular e cotas uma oposição, um contrário). A cota, ao tentar sanar as deficiências do atual sistema sem defender a supressão do vestibular, é basicamente complementar ao mesmo.
Mas, se a política é desejável, queremos que ela funcione e para isso precisamos critérios, o que nos leva ao ponto (2). Vejo que claramente te incomoda a questão racial ou étnica: “Negro tem menos capacidade? Ou um pobre negro tem acesso a uma educação publica diferente que o pobre branco?” – mas, ao mesmo tempo, tu reconheces: “Tem poucos negros na faculdade porque a maioria dos pobres são negros por uma questão histórica, e não porque eles são negros”. Que “questão histórica” é essa? Para resumir alguns séculos, vamos chamá-la de escravidão. Aí te pergunto: há recorte étnico-racial na escravidão? Me parece que sim. Então podemos dizer que o mesmo critério funcionava sem maiores problemas até 1888, e ainda mais inescrupulosamente nos projetos de “branqueamento” do Brasil.
Agora, não seria hipócrita negar a “objetividade” do critério no momento em que o país reconhece sua dívida histórica com o povo que foi escravizado? A única objeção que me ocorre é que, sendo objetivo naquela época, nos nossos tempos ela já virou impreciso e casuístico nesse arco-íris racial freyriano. Mas tu mesmo disseste que “tem poucos negros na faculdade”. Dando aula nas seis principais universidades do país (USP, Unicamp, UFRJ, UFMG, UFRGS e UnB), são 0,4% do total, sendo que a população autodeclarada negra/parda chega a quase metade dos brasileiros. Entre as pessoas brancas, o número de diplomados é 13,4% e, entre os negros, 4%. Isso sem falar no mercado de trabalho, nos serviços públicos e na “técnica” policial (por sinal, foi absolvida a PM que grampeou uns africanos por serem negros).
Então parece que o mesmo critério funciona para o empregador pagar um salário menor, para o policial prender antes e perguntar depois, para o obstetra do SUS fazer parto normal sem anestesia, para o segurança de shopping justificar sua suspeita, etc.
Ele só não funciona se é para reservar vagas na universidade.
Então, o fato de ser uma “questão histórica” que explica o fato de “terem poucos negros na faculdade” não deslegitima o critério racial, e sim o reforça. Pois essa tal “questão histórica” é profundamente racializada. Podemos, assim, incluir no aspecto moral da política de cotas que ela, ao tentar contornar as seletividades informais do vestibular, cumpre um papel reparatório em relação à questão étnica no Brasil. Se assim é, a meta do critério deve ser atingir o mais possível a população negra/parda (a fim de superar essa “questão histórica”), e não negar a objetividade desse critério (como tu fazes).
Com relação ao critério “social”, aí confesso que não entendi o argumento. Tu usas exemplos em que se confundem o específico e o geral. O fato de existir uma pessoa rica na escola pública não é comparável com o fato de a maioria das pessoas pobres estarem no ensino público. Eu acredito que a política pública precisa se pautar pelo geral, e não pela exceção. Não há bem absoluto, há o melhor possível.
Ou ainda, poderíamos pensar pelo outro sentido: porque uma família pobre faz um esforço sobre-humano (“apertar o cinto”) para garantir um ensino privado aos filhos? Resumindo ao extremo, não é porque essa é a chance de chegar ao ensino superior e ter um trabalho qualificado? Implicitamente, essa família não está atestando que o ensino superior público é hegemonizado pelo ensino básico privado? Não era esse o problema fundamental que estávamos tentando reparar no vestibular?
Os critérios têm problemas, e sempre terão. O que precisamos ter claro é o que esperamos deles: se nossa expectativa é utilizá-los como mecanismo de deslegitimar a política pública, seus problemas serão sempre insolúveis por definição. Se nosso objetivo é diagnosticá-los para aprender com a experiência, veremos os critérios (e sua necessidade de aprimoramento) como forma constante de aproximar a operacionalidade da ação com o conteúdo ético com que ela se compromete. E com isso interrompemos a discussão dos critérios (2).
Aí entramos no argumento de que essa é uma política paliativa, tapa-buraco (3). Basicamente, minha resposta é “oba, uma política tapa-buraco!”. Na minha opinião, é melhor do que deixar o buraco aberto, como tem estado nos últimos séculos. Como acredito que não há bem absoluto, acho que é sempre melhor fazer alguma coisa do que não fazer nada.
E o argumento da escola básica, ora, não o tomemos conservadoramente. Isto é, não usemos o imperativo de investir na escola básica como substituto das cotas no ensino superior, como uma forma de legitimar a paralisia.
Reza a lenda de que quando oposição ou governo querem parar as votações no plenário, colocam o regimento interno em discussão. Porque sabem que nada vai mudar nele mesmo, mas essa pauta assegura que outras não venham à tona. Esse argumento da escola básica como substituto às cotas me parece esse tipo de procrastinação. Trata-se a melhoria da escola básica como um argumento de reação, de obstáculo, de polêmica, e não de ação (como se deveria caso o objetivo de fato for melhorar a escola pública).
Dizer que uma política é paliativa pode ser válido se há uma contraproposta que seja “radical”, que vá às raízes do problema. Eu acho que esse é o espírito do sexto parágrafo, embora com ressalvas (“ainda tenho minhas dúvidas”). A ideia levantada é: “cotas por renda familiar per capita, com duração máxima de 20 anos, com uma média mínima decente para entrar, enquanto o governo de fato cumpre metas de melhora no ensino básico”. Te parece mesmo um bom critério a renda familiar per capita? Haveria um valor, tipo 600 reais mensais por pessoa, abaixo do qual se tem direito à cota? A pessoa teria que comprovar ao longo do curso que continua pobre para não perder a vaga? Ou basta ser pobre no momento da matrícula? Isso está mais imune à fraude do que os critérios atuais? Quem vai dizer qual é esse número mágico que estabelece quem é pobre no Brasil e quem não é?
Esses são problemas com que deverias te preocupar, se a ideia é melhorar o vestibular através das cotas. Ou então as assuma como moralmente indesejáveis, mas aí seja direta: o vestibular tem problemas e não há forma de melhorá-lo através das cotas. E aí há que abandonar essa convenção jornalística de sempre apresentar imparcialmente os dois pontos de vista, o errado e o teu.
Acho que, após o sarcasmo do final do sexto parágrafo, teu texto fica mais claramente anti-cotas. “As cotas servem apenas para angariar votos” é a frase que abre o último parágrafo. Ora, se elas servem só para colher votos, não há critério que possa resolver a política pública, pois ela é perversa em si. As cotas nunca vão reparar as deficiências do vestibular porque elas não são feitas para isso, são feitas para reeleger políticos. Veja que, com isso, teu próprio argumento deslegitima três quartos de teu texto, ancorados na ideia de que o vestibular “se tornou muito injusto” e essa é a razão de ser das cotas.
O último parágrafo é agressivo, e poderíamos discuti-lo por horas. Mas o que me chamou mais atenção foi o trecho: “Assim, tiram foco do real problema, tapam o sol com a peneira”, e essa é a imagem que ilustra o texto. Desculpe-me a indiscrição, mas qual o “real problema”? A educação básica? A concepção preto-e-branco do mundo? A classe política? As pessoas votarem “mal”?
Ao terminar com um “e tudo continua tudo igual”, o texto se revela, sob uma retórica de indignação, uma tácita aquiescência a que as coisas de fato continuem como estão. É um elogio da impotência humana frente ao “real problema”, que sequer sabemos bem qual é. Para terminar, queria dizer que eu acho que temos vários reais problemas, e no caso das cotas, o que vem à baila é a desigualdade social e étnica do país, e como ela impacta o acesso ao ensino público. Nisso, ela está cumprindo um papel relevante onde é aplicada (a ver pelas estatísticas), ainda que seus detratores prefiram se ater não ao resultado geral, mas ao específico, ao particular, à exceção (como a capa da Veja sobre os irmãos gêmeos da UnB). Claro que tenho críticas às ações afirmativas, inclusive porque para mim o vestibular para universidade pública sequer deveria existir. Mas isso não me impede de, diante de argumentos como esse, defender os avanços que já temos. Espero que o Conselho Universitário da UFRGS faça o mesmo.