Sobre as cotas na UFRGS

Texto: Pedro Borba

Ilustração: Marcelo Viola

Resposta ao texto de Shana Sudbrack, chamado “O problema com as cotas”, publicado em seu blog. A propósito dessa questão, espera-se que o Conselho Universitário da UFRGS delibere em sua próxima reunião ordinária sobre a renovação de seu programa de ações afirmativas. 

Olá Shana,

Li seu texto e acho que entendi o argumento, ainda que não concorde com ele. Vamos abrir o diálogo:

Pelo que entendi, a sequência lógica é: (1) hoje o sistema de ingresso na universidade pública está ruim, mas a política de cotas é ainda pior; (2) ela é pior porque seus critérios são falhos; (3) ela é uma medida paliativa, tapa-buraco, que desconsidera o investimento em educação básica; (4) para se criar uma política séria, precisaríamos de melhores critérios, como renda familiar per capita; (5) a política de cotas é eleitoreira.

Bueno, começando pelo começo, concordo contigo que o sistema de ingresso na universidade pública é problemático, porque o vestibular cria uma seletividade informal de renda (como tu mesmo dizes, pela indústria dos cursinhos e dos colégios privados “aprovadores”). A questão a saber é onde entram as cotas. Por mais que tu use a expressão “também são falhas”, o que tu quer dizer é que as cotas “são mais falhas” do que o vestibular, pois tu não os trata com equivalência. A rigor, a discordância com os critérios das ações afirmativas te conduz a negar a política pública (“extremamente mal pensada”), responsabilizando-a pela criação de “novas desigualdades”. O que me interessa por enquanto é separar o aspecto moral do operacional, isto é, a desejabilidade de ações afirmativas (moral) dos critérios utilizados para implementá-las (operacional). Se diagnosticamos os problemas do sistema atual, podemos trabalhar para melhorá-lo. Se o consideramos ilegítimo, não há debate operacional possível.

Quanto ao aspecto moral, o argumento da criação de novas desigualdades me parece fraco porque o seu contrário parece mais convincente: ao criar uma política de reservas de vagas, estamos tentando contornar as assimetrias sociais às quais o vestibular é insensível, e por isso excludente. Estamos tentando agir sobre a seletividade informal que verificamos. Nosso objetivo é minorar as deficiências que estão expressas no início do teu argumento e com que concordo. Isso não quer dizer que vá funcionar (operacional). Por enquanto estamos no terreno da hipótese. O que quero contrapor é que não há uma adversativa (como tu colocas “mas as cotas também são falhas”, criando entre vestibular e cotas uma oposição, um contrário). A cota, ao tentar sanar as deficiências do atual sistema sem defender a supressão do vestibular, é basicamente complementar ao mesmo.

Mas, se a política é desejável, queremos que ela funcione e para isso precisamos critérios, o que nos leva ao ponto (2). Vejo que claramente te incomoda a questão racial ou étnica: “Negro tem menos capacidade? Ou um pobre negro tem acesso a uma educação publica diferente que o pobre branco?” – mas, ao mesmo tempo, tu reconheces: “Tem poucos negros na faculdade porque a maioria dos pobres são negros por uma questão histórica, e não porque eles são negros”. Que “questão histórica” é essa? Para resumir alguns séculos, vamos chamá-la de escravidão. Aí te pergunto: há recorte étnico-racial na escravidão? Me parece que sim. Então podemos dizer que o mesmo critério funcionava sem maiores problemas até 1888, e ainda mais inescrupulosamente nos projetos de “branqueamento” do Brasil.

Agora, não seria hipócrita negar a “objetividade” do critério no momento em que o país reconhece sua dívida histórica com o povo que foi escravizado? A única objeção que me ocorre é que, sendo objetivo naquela época, nos nossos tempos ela já virou impreciso e casuístico nesse arco-íris racial freyriano. Mas tu mesmo disseste que “tem poucos negros na faculdade”. Dando aula nas seis principais universidades do país (USP, Unicamp, UFRJ, UFMG, UFRGS e UnB), são 0,4% do total, sendo que a população autodeclarada negra/parda chega a quase metade dos brasileiros. Entre as pessoas brancas, o número de diplomados é 13,4% e, entre os negros, 4%. Isso sem falar no mercado de trabalho, nos serviços públicos e na “técnica” policial (por sinal, foi absolvida a PM que grampeou uns africanos por serem negros).

Então parece que o mesmo critério funciona para o empregador pagar um salário menor, para o policial prender antes e perguntar depois, para o obstetra do SUS fazer parto normal sem anestesia, para o segurança de shopping justificar sua suspeita, etc.

Ele só não funciona se é para reservar vagas na universidade.

Então, o fato de ser uma “questão histórica” que explica o fato de “terem poucos negros na faculdade” não deslegitima o critério racial, e sim o reforça. Pois essa tal “questão histórica” é profundamente racializada. Podemos, assim, incluir no aspecto moral da política de cotas que ela, ao tentar contornar as seletividades informais do vestibular, cumpre um papel reparatório em relação à questão étnica no Brasil. Se assim é, a meta do critério deve ser atingir o mais possível a população negra/parda (a fim de superar essa “questão histórica”), e não negar a objetividade desse critério (como tu fazes).

Com relação ao critério “social”, aí confesso que não entendi o argumento. Tu usas exemplos em que se confundem o específico e o geral. O fato de existir uma pessoa rica na escola pública não é comparável com o fato de a maioria das pessoas pobres estarem no ensino público. Eu acredito que a política pública precisa se pautar pelo geral, e não pela exceção. Não há bem absoluto, há o melhor possível.

Ou ainda, poderíamos pensar pelo outro sentido: porque uma família pobre faz um esforço sobre-humano (“apertar o cinto”) para garantir um ensino privado aos filhos? Resumindo ao extremo, não é porque essa é a chance de chegar ao ensino superior e ter um trabalho qualificado? Implicitamente, essa família não está atestando que o ensino superior público é hegemonizado pelo ensino básico privado? Não era esse o problema fundamental que estávamos tentando reparar no vestibular?

Os critérios têm problemas, e sempre terão. O que precisamos ter claro é o que esperamos deles: se nossa expectativa é utilizá-los como mecanismo de deslegitimar a política pública, seus problemas serão sempre insolúveis por definição. Se nosso objetivo é diagnosticá-los para aprender com a experiência, veremos os critérios (e sua necessidade de aprimoramento) como forma constante de aproximar a operacionalidade da ação com o conteúdo ético com que ela se compromete. E com isso interrompemos a discussão dos critérios (2).

Aí entramos no argumento de que essa é uma política paliativa, tapa-buraco (3). Basicamente, minha resposta é “oba, uma política tapa-buraco!”. Na minha opinião, é melhor do que deixar o buraco aberto, como tem estado nos últimos séculos. Como acredito que não há bem absoluto, acho que é sempre melhor fazer alguma coisa do que não fazer nada.

E o argumento da escola básica, ora, não o tomemos conservadoramente. Isto é, não usemos o imperativo de investir na escola básica como substituto das cotas no ensino superior, como uma forma de legitimar a paralisia.

Reza a lenda de que quando oposição ou governo querem parar as votações no plenário, colocam o regimento interno em discussão. Porque sabem que nada vai mudar nele mesmo, mas essa pauta assegura que outras não venham à tona. Esse argumento da escola básica como substituto às cotas me parece esse tipo de procrastinação. Trata-se a melhoria da escola básica como um argumento de reação, de obstáculo, de polêmica, e não de ação (como se deveria caso o objetivo de fato for melhorar a escola pública).

Dizer que uma política é paliativa pode ser válido se há uma contraproposta que seja “radical”, que vá às raízes do problema. Eu acho que esse é o espírito do sexto parágrafo, embora com ressalvas (“ainda tenho minhas dúvidas”). A ideia levantada é: “cotas por renda familiar per capita, com duração máxima de 20 anos, com uma média mínima decente para entrar, enquanto o governo de fato cumpre metas de melhora no ensino básico”. Te parece mesmo um bom critério a renda familiar per capita? Haveria um valor, tipo 600 reais mensais por pessoa, abaixo do qual se tem direito à cota? A pessoa teria que comprovar ao longo do curso que continua pobre para não perder a vaga? Ou basta ser pobre no momento da matrícula? Isso está mais imune à fraude do que os critérios atuais? Quem vai dizer qual é esse número mágico que estabelece quem é pobre no Brasil e quem não é?

Esses são problemas com que deverias te preocupar, se a ideia é melhorar o vestibular através das cotas. Ou então as assuma como moralmente indesejáveis, mas aí seja direta: o vestibular tem problemas e não há forma de melhorá-lo através das cotas. E aí há que abandonar essa convenção jornalística de sempre apresentar imparcialmente os dois pontos de vista, o errado e o teu.

Acho que, após o sarcasmo do final do sexto parágrafo, teu texto fica mais claramente anti-cotas. “As cotas servem apenas para angariar votos” é a frase que abre o último parágrafo. Ora, se elas servem só para colher votos, não há critério que possa resolver a política pública, pois ela é perversa em si. As cotas nunca vão reparar as deficiências do vestibular porque elas não são feitas para isso, são feitas para reeleger políticos. Veja que, com isso, teu próprio argumento deslegitima três quartos de teu texto, ancorados na ideia de que o vestibular “se tornou muito injusto” e essa é a razão de ser das cotas.

O último parágrafo é agressivo, e poderíamos discuti-lo por horas. Mas o que me chamou mais atenção foi o trecho: “Assim, tiram foco do real problema, tapam o sol com a peneira”, e essa é a imagem que ilustra o texto. Desculpe-me a indiscrição, mas qual o “real problema”? A educação básica? A concepção preto-e-branco do mundo? A classe política? As pessoas votarem “mal”?

Ao terminar com um “e tudo continua tudo igual”, o texto se revela, sob uma retórica de indignação, uma tácita aquiescência a que as coisas de fato continuem como estão. É um elogio da impotência humana frente ao “real problema”, que sequer sabemos bem qual é. Para terminar, queria dizer que eu acho que temos vários reais problemas, e no caso das cotas, o que vem à baila é a desigualdade social e étnica do país, e como ela impacta o acesso ao ensino público. Nisso, ela está cumprindo um papel relevante onde é aplicada (a ver pelas estatísticas), ainda que seus detratores prefiram se ater não ao resultado geral, mas ao específico, ao particular, à exceção (como a capa da Veja sobre os irmãos gêmeos da UnB). Claro que tenho críticas às ações afirmativas, inclusive porque para mim o vestibular para universidade pública sequer deveria existir. Mas isso não me impede de, diante de argumentos como esse, defender os avanços que já temos. Espero que o Conselho Universitário da UFRGS faça o mesmo.

A poeira que cobre o tempo e o tempo que nos descobre

“Mas o trem de casas-vagões
Passa ou é passado por?
Como poder distinguir
Do passado o passador?”

João Cabral de Melo Neto

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Texto: Pedro Borba // Ilustração: Marcelo Viola

Ela não vem. Esse pensamento ia e vinha à minha cabeça ao longo dos quarenta e dois minutos em que acompanhei os ponteiros deslizarem sobre os números de ferro do único relógio de que dispunha, o da estação. Sim, estou em uma estação de trem quase vazia, sem vento suficiente para mover a poeira e sem sol suficiente para esquentar a alma.

Quando os seres humanos compram um bilhete de trem, eles escolhem seu destino. Aliás, não faz nenhum sentido comprar um bilhete sem definir anteriormente o rumo da viagem. O mesmo não acontece com o amor que cultivam esses mesmos seres humanos. Ninguém pergunta o destino antes da partida, e somente por esse detalhe decisivo é que duas pessoas que partem em um mesmo vagão podem chegar a lugares tão distantes. Tampouco existem estações no percurso. No amor, não há nenhum ponto intermediário, não há um ponto de controle. Curiosa viagem sem destino e sem controle para a qual teimamos em comprar bilhetes e, depois da decepção do rumo perdido, convencer-nos de que o problema consistia em um casual erro de execução, e não na natureza própria da viagem.

Um velho que vivia nessa estação dizia com frequência que não são os trens que se atrasam, são os relógios que se adiantam. Olhando aquele monótono relógio de ferro, com cerca de um metro de diâmetro, chego à conclusão inabalável de que meus relógios têm errado há anos, sem que em nenhum momento antes do presente eu tenha sido capaz de diagnosticar sua pressa. Talvez não o tenha sido porque meu tempo corria no ritmo antecipado de meus relógios, e talvez por isso me veja agora há quarenta e quatro minutos sem ver trem algum chegar a essa plataforma. Se isso for mesmo assim, talvez tenha que esperar por anos até que eu volte ao tempo em que passam os trens, ou em que deve passar o trem que aguardo. Olho para o relógio de ferro que jocosamente saboreia o golpe que me aplicou.

À exceção do velho que aqui vivia, e que hoje já não vive, as pessoas somente estão em estações de trem, que são locais por definição transitórios, fugazes. Não é à toa que nos chamam passageiros. Nesses locais desconfortáveis e poeirentos, as pessoas só estão para deixar de estar. Não há o que fazer em uma estação de trem além de esperar o trem para poder abandonar a estação.

No entanto, só me dei conta de onde essa transitoriedade podia chegar quando tive vontade de me atirar na frente do trem em movimento. E não foram poucas vezes. Na primeira, eu era criança e fiquei estupefato com aquele ponto móvel que, ainda distante, emitia um poderoso ruído e penetrava a noite com suas luzes; vi-o aproximar-se, hipnotizando-me, avolumando-se na mesma velocidade constante com que se deslocava. Em alguns instantes, tinha diante de mim um monstro imenso, com sua diabólica máscara de ferro e uma torre que expulsava fumaça negra de suas entranhas. No átimo em que a coisa cruzou por minha frente, e eu me encontrava na linha da plataforma, sem nada que me detivesse, a vontade de entregar-se ao monstro foi potente e vertiginosa. Desde então, sempre sinto uma pequena vertigem ao ver o trem passar. Posso dizer com segurança que, naquele átimo, estive no limiar da vida, e o vento que me gelou a alma era o sopro da morte. Essa é a verdadeira transitoriedade que a estação me faz sentir. Não é qualquer lugar que me coloca o convite da morte ao alcance de um passo.

Por uma ironia alheia à minha vontade, estou há quarenta e sete minutos esperando o retorno desse convite. E espero o trem já esperando que dentro do trem ela não venha, e sabendo que, se vier, ela não espera que eu a espero. Talvez, se o trem dela aparecer, eu resolva aceitar pela primeira vez o convite. Contudo, no fundo me conformo que nunca terei essa coragem, pois já sei que a minha foi quase insuficiente para que eu viesse esperá-la sem que ela esperasse por isso. Em uma estação de trem cheia de poeira, um homem é capaz de enxergar seus medos, sua pusilanimidade, sua insegurança; é capaz de ver-se refém de um velho relógio de ferro que marca seis horas e quarenta e oito minutos; é capaz até de reconhecer seus erros. Mas é e será incapaz de aprimorar-se. Pelo menos enquanto a estação continuar silenciosa como está, ou enquanto o movimento da estação continuar limitando-se ao ponteiro de ferro, ou enquanto o único vento que soprar seja tão débil que sequer mova a poeira do chão da estação. Será forçosamente incapaz enquanto o único pensamento que lhe vem e vai à cabeça é o de que ela não vem.

Essa não é uma história sobre ponteiros. É uma história sobre reticências. Em uma narrativa inacabada, interessam-me os três pontos perfilados como vagões, que subsituem o não dito pela sensação de ansiosa incompletude, por aquela vaga e ambígua reticência que deixa a sentença em aberto. As reticências são um mecanismo pelo qual o autor, por omissão voluntária, abre seu texto para que este seja completo por quem lê, e assim a ambiguidade ganhe sentido unívoco, pelo menos por um instante. Afinal, o que é o amor senão a decisão de reticenciar nossa vida para que outrem a complete, pelo menos por um instante. O que é senão a omissão voluntária em relação ao nosso destino, embarcado em um vagão irresponsável e inconstante. O que são essas reticências perfiladas ao final senão a expectativa que alguém as preencha de significado e as transforme em ponto final. Mesmo que essa expectativa dure intermináveis cinquenta e dois minutos arbitrados sarcasticamente por um relógio de ferro em uma estação de trem quase vazia. Porque o que é uma estação de trem senão o lugar atemporal das esperas?

Futebol Total

Texto: Pedro Borba

Ilustração: Marcelo Viola

Guardiola não é mais o treinador do Barcelona. Se vivo, acho que em 2030 vou falar que vi o Barcelona que Gardiola assumiu em 2007, em seu primeiro emprego como treinador, e entregou cinco anos depois com um punhado de canecos a mais. Foram cinco anos que refundaram minha forma de pensar o futebol, porque para mim foi uma geração de futebol total. Nos anos em que o Messi passou a ser um semi-deus e o melhor jogador do mundo, era o Guardiola que estava no banco. Sem Messi e sem Guardiola, o Barcelona ganhou a Copa do Mundo com a camisa da Espanha. Nesses fatídicos cinco anos (2007-2012), a Espanha ganhou tudo como nunca havia ganhado em sua história. E acaba de ganhar a Eurocopa, com jogadores e a filosofia do Barcelona, só que sem seu o técnico (Guardiola), sem o melhor jogador do mundo (Messi), sem o melhor atacante da Espanha (Villa) e sem o capitão do time (Puyol). E não só ganharam; foi quatro a zero e um banho de bola na final.

Quando todos achavam que futebol se ganharia na academia (e o Muricy Ramalho queria um Inter de “altos e fortes”, sem comentários), o Barcelona tinha lugar para uns biotipos bem estranhos, como o Iniesta e o Busquets, e vencia não no físico, mas no conjunto. Na musculatura coletiva. Quando todo mundo monta um time de quatro volantes, eles atacam com seis, sete jogadores. O mesmo time que descobriu que o jeito mais eficiente de marcar um adversário capaz simplesmente é mantendo-o sem a bola (disse Fábregas antes da final contra o Santos, a propósito do “imarcável” Neymar). E consegue manter a bola dando cerca de quatro vezes mais passes certos por jogo do que seus adversários.

Agora que o Camp Nou está em crise, e Guardiola abandonou o comando da equipe, parece um bom momento para relembrar alguns aspectos desses cinco anos.

Começando pelo mais bizarro, uma revista estadunidense elegeu Messi uma das cem pessoas mais influentes do mundo, sendo que ele nunca abre a boca.

Mas com vinte e quatro anos ele é a pessoa que mais fez gols com a camisa do Barcelona na história do clube. E, quando todos os clubes pregavam que artilheiro teria que ter o biótipo de um lutador de UFC, o rapaz é atarracado daquele jeito, com um problema hormonal de crescimento herdado da adolescência.

A máxima de que o último toque está no pé do centroavante veio abaixo. Messi é uma mistura de um meia-ofensivo com o ponta (ah, o antigo ponta…) pela esquerda. A particularidade de Lionel Messi no Barça de Guardiola é que ele não era só técnica, mas um papel tático muito particular, raro. A associação comum com o Cristiano Ronaldo (além da rivalidade Barça-Real) é que eles são espécimes raros desse tipo de atacante de velocidade, que conduz a jogada na diagonal, uma diagonal fulminante. E, quanto à finalização, o Messi tem outro diferencial óbvio. Quem já o viu cara a cara com o goleiro percebe que o argentino não “chuta” a gol, ele desloca o goleiro da bola. A diferença é sutil, não sei se é clara. Seja tocando a bola por cima (que virou sua marca), seja atrasando uma passada, seja fintando para um lado e colocando no outro, é como se Messi cobrasse um pênalti com bola rolando.

Xavi e Iniesta viraram sinônimo de posse de bola. Eles conseguiram fazer uma simbiose entre passe e drible, porque o drible não serve para ultrapassar, mas para abrir espaço, e o bom passe é uma forma de drible em que quem ultrapassa é a bola, não o driblador. Além disso, eu acho impressionante que, nem sempre mas com frequência, a equipe adversária sai com marcação fechada, e joga três caras para abafar o Iniesta (com uma sobredose de coerção, eventualmente) e a bola sai daquele tumulto em direção a um jogador do Barça, ou o juiz apita falta…

A finta abre espaço e o passe dribla, ou o contrário, enfim. Esses tempos estava discutindo no Bar do Tota sobre a melhor forma de jogar contra o Barcelona. Meu interlocutor insistia que tinha que marcar pressão, sufocar a saída, encurtar o espaço. Eu lhe dizia que os riscos de sair com seis jogadores para o campo de defesa do Barça é que, por aritmética básica, vão ficar quatro na defesa, e isso é, digamos, meio gol para eles. A chance de tomar a bola no campo de defesa depende fundamentalmente de um erro de Puyol ou Piquet (que são, em termos relativos, os menos hábeis), e a reação defensiva do Barça costuma ser recuar Iniesta e Xavi para a defesa, para facilitar a saída de bola. É interessante ver aquela estatística de presença em campo (apresentada como uma mancha em diferentes cores, dependendo da incidência do jogador na área), em que os meias ofensivos do Barcelona cobrem uma área muito maior, ou seja, tem uma presença mais difusa. A função de Xavi e Iniesta não é definida no espaço, mas na tática: eles precisam lubrificar o toque de bola onde a bola estiver, e para isso se revezam. Eles são meias não só porque estão no meio do campo, mas porque são os “meios” por onde o jogo vai passar. Voltando ao problema de como jogar contra o Barcelona, eu defendia que a melhor saída ainda é a do Mourinho (porque funcionou mais de uma vez): duas linhas de quatro na defesa e contra-ataque rápido pelos lados, ou gol de boa parada. Em outras palavras, não se joga contra eles do mesmo jeito que eles jogam contra ti. Eles ficam com a bola para que tu não ataques. E tu deixa a bola com eles sem nenhum espaço para que te ataquem.

Como não vou ficar comentando jogador por jogador, queria só pontuar algumas coisas sobre o coletivo. Um pressuposto óbvio e nem sempre valorizado é que só é possível jogar coletivamente se os passes são acertados (e, sobre isso, deem uma olhada nesse vídeo).

Depois que eu consigo acertar passes, eu preciso que meu time se mexa sem a bola, para que consigamos avançar trocando passes. Meu argumento é de que esse é a dinâmica do futebol de salão, e que o Barça é uma equipe de salão de onze jogadores, que joga em um campo maior. Para situar, vejam isso:

A lógica dominante no futebol de campo é que a equipe se distribui taticamente (4-4-2, 3-5-2, 4-3-3) e a função do passe é levar a bola a quem esteja mais avançado (o volante precisa receber do zagueiro, e levar ao meia, e o meia ao atacante, e o atacante ao gol, sendo os laterais a via de escape pelo flanco). O problema dessa lógica é que ela é estática. Ao privilegiar o movimento sem a bola, eu posso atacar com o zagueiro tranquilamente. A “tática”, se entendida como aquela sequencia de três números, perde o sentido. Ao privilegiar o movimento sem a bola, eu avanço com a bola. Ao privilegiar o movimento sem a bola, eu elevo o fundamento “passe” acima do fundamento “lançamento”. Na lógica estática, o lançamento é uma forma de atalhar o caminho. Fora dela, o lançamento é uma forma de perder a bola. E por isso recuam-se os meias para sair jogando. E, fazendo isso, o Barcelona de Pep Guardiola teve mais posse de bola tem todos os jogos que jogou.

Elevando o fundamento “passe” acima do “lançamento”, a equipe consegue atacar pelo meio da defesa, perfurando-a em direção ao gol. Essa é evidentemente a forma mais incisiva de atacar. Apólogos do lançamento, cujo exemplar que sempre me vem à cabeça é o Batista, insistem e continuarão insistindo na jogada “pelos lados” ou “pelos flancos”, na necessidade de “escapar do congestionamento do meio”.  E com isso estarão defendendo sub-repticiamente o balão para a área, o chuveirinho. Dificilmente consigo imaginar que o Iniesta veja um congestionamento na defesa, pela clara razão de que em um congestionamento ninguém se mexe.

Seremos órfãos desse time. Do futebol jogado com o pé. Do gol feito com o time inteiro. Do domínio total do jogo. Mais do que tudo, seremos órfãos dessa ideia romântica e irresistível de que futebol pode ser belo sem ser individualista, pode ser artístico sem ser caricato, pode ser estratégico sem ser mecânico e pode ser coletivo sem ser chato. Quando se invocar o domínio de posse de bola, o toque curto e o ataque pelo meio, lembraremos de Xavi, Iniesta, Fábregas, Messi e Villa. O Barça pode ficar para trás, mas esse futebol nós, seus órfãos, seguiremos acalentando. Como sebastianistas esperaremos seu retorno.

Vídeos sobre o Barcelona

 

Estratégias de debate em boteco

Texto: Pedro Borba

Ilustração: Marcelo Viola

(Ministério da Defesa adverte: textos longos podem causar perda de tempo)

Se você nunca precisou disputar uma polêmica em mesa de bar, já pode parar de ler. Caso contrário, você há de convir que uma discussão dessa natureza não se decide pela razão, pela verdade, pelo bom senso ou qualquer árbitro imparcial, pelo motivo simples de que nenhum desses elementos comparece ao bar, muito menos para decidir alguma coisa. O que decide a peleia entre arguentes embriagados é a capacidade de persuasão, de auto-afirmação verbal sobre o oponente. Disso facilmente se extrai que existem métodos para convencer. Não me dedicarei aos métodos, quiçá mais efetivos, que envolvem alguma forma de coerção ou imposição física, uma vez que, por minha parca compleição física, eu nunca ganhei nenhuma discussão dessa forma e não teria nada a acrescentar a esse respeito.

Envolvendo as polêmicas resolvidas pacificamente, valem duas observações iniciais. A primeira é que a condução da conversação obedece a um encadeamento necessário de ideias, presumindo a situação em que as partes não estão bêbadas o suficiente para não conseguirem sequenciar ideias. Nas situações normais, existe um “fio do discurso” enlaçando os dois lados da discussão, que obviamente não é pré-determinado (entendam “necessário” em um sentido frouxo), mas antes é disputado no processo. Há um fio porque há uma divergência, mas os meios pelos quais se a trata são manobráveis. A segunda observação é que a dinâmica da coisa se assemelha a uma luta, em que cada sujeito se preocupa simultaneamente em atacar e resguardar-se, de avançar seu argumento e neutralizar o contraponto. Alguém já disse isso antes de mim, mas eu não me inibo. O que é interessante é que, como nas lutas em geral, a distinção entre ataque e defesa é teórica e imprecisa na prática.

O propósito disso aqui é lançar algumas estratégias gerais para ter razão mesmo sem ela.

1-      A Falácia do Exemplo: corresponde à contraposição de um argumento pretensamente geral com um exemplo, às vezes único, que o contradiga. Por exemplo: A diz “as pessoas do sul e sudeste tem mais dinheiro que nas outras regiões do país” (geral) e B responde: “tu quer dizer então que eu ganho mais que o Collor e que o Sarney?” (específico). Ele pode ter versões mais sofisticadas; exemplo: A diz: “a questão étnico-racial no Brasil não se pode tratar como uma mera questão de renda, por isso as cotas raciais também são importantes, etc.”, ao que B responde: “mas se raça é um critério objetivo, como se explica os gêmeos da UnB?”. Último exemplo: A diz: “a CBF é uma camarilha” (geral) e B responde: “não é bem assim, eu tenho um tio que trabalhou oito anos lá e ele é super honesto e trabalhador”.

Resumindo a história, o fato de haver um exemplo, um caso, um tio ou uma exceção não é um argumento comparável ao postulado geral, porque este, via de regra, comporta certos casos discrepantes. Nesse caso, o que fazer? Se você está na ofensiva (A), há que deslegitimar essa forma de defesa pelo acima exposto. A forma vulgar de fazer isso é o “a exceção confirma a regra”, mas essa expressão é perigosa e pode voltar-se contra si. Uma saída excelente é ridicularizar essa falácia do exemplo com um caso esdrúxulo: A replica: “tudo bem, cara, seu tio pode ser honesto, mas trinta e nove ladrões dão conta do recado”. Ou ainda coisas como: “bom, nessa lógica o fato do Martin Dahlin jogar na seleção sueca de 1994 faz da Suécia o país da mestiçagem e do multiculturalismo”. Sátiras à parte, o importante é deixar claro que regra geral e exemplo particular são coisas diferentes. Mas e se você está defendendo? Existem pelo menos duas formas mais sagazes de usar-se essa falácia para derrubar uma regra geral sustentada pelo oponente. Uma é colocar uma mediação desse tipo: “isso [que você está falando] é um absurdo, eu poderia dar vários exemplos para dizer o contrário”; se o interlocutor pressionar na ofensiva, ele passará à posição de que, além de geral, a regra é absoluta, e daí com um único caso discrepante você poderá derrubá-la. A segunda forma de defender-se com a falácia é mais difícil porque exige raciocínio rápido, de modo a contestar a regra geral com pelo menos três exemplos que a contradigam. Exemplo: A diz: “as cervejas alemãs são melhores que as brasileiras, que são aguadas”; ao que B responde: “como assim aguadas? Já tomou Eisenbahn? Gomme? Baden-Baden?”. Nesse ponto, não só é lícito como útil colocar um exemplo absurdamente hermético, ou mesmo inventar um, porque se combina a força da listagem com um argumento de autoridade (A ficaria impotente por não conhecer a cervejaria Gomme mencionada por B, sem saber que ela não existe). Há casos também em que a facilidade de listar exemplos é uma consequência da precariedade da lei geral defendida.

2-      Manobra de Diversão: não é entrenimento rapazeada, é diversão no sentido de desviar a atenção, desorientar. Essa é uma artimanha essencialmente defensiva e emergencial, e nem sempre bem-sucedida. O defensor, já acuado, utiliza alguma janela de oportunidade para recentrar a discussão, abrindo uma nova polêmica em que se acredite melhor posicionado. Se repararmos bem, isso já foi ensaiado no exemplo das cervejas, porque o postulado principal do ataque (“cervejas alemãs são melhores que as brasileiras”) foi substituído na defesa por seu auxiliar (“cervejas brasileiras são aguadas”), sendo que não há uma relação de necessidade entre ambos. Ou seja, as cervejas brasileiras podem até não ser aguadas, mas não são melhores que as alemãs. Isso foi uma sutil manobra de diversão. Outro exemplo: A sustenta que o Grêmio é superior ao Internacional (postulado que obviamente acuaria quem defendesse o contrário), e para isso concatena argumentos: maior torcida, melhor hino, mais bem posicionado no ranking da CBF, ganhou de 10×0 o primeiro gre-nal, etc. Tendo colocado esse argumento, abre-se a janela de oportunidade: “Bah vocês gremistas são obcecados por esse gre-nal do 10×0, futebol é presente e não passado… Ou tu vai me dizer que o Éder jogava mais que o Damião? ” – com isso, transfere-se a discussão, antes centrada na polarização Grêmio-Inter para outra Éder-Damião. Vale lembrar que discussões Gre-Nal são pouco propícias a uma manobra de diversão, dada a obstinação das partes pelo assunto. Outro exemplo, então: A sustenta que a Bossa Nova refundou a música popular brasileira, enquanto que B atribui esse papel à Legião Urbana. No debate, A associa a Bossa Nova ao Jazz dos EUA, no que B vê uma janela de oportunidade para a diversão; assim, B diz: “você mesmo está dizendo que a Bossa Nova é jazzística, mal dá pra dizer que é música brasileira de verdade, etc.” E o tópico em discussão passa a ser o caráter “nacional” ou “imitativo” da Bossa Nova. Uma versão mais refinada da manobra de diversão incorpora à mudança de assunto uma afirmação categórica, de modo que além de sair da defensiva, pode-se partir para o novo tópico no ataque. Vamos ao exemplo: A acua B postulando que a democracia no Brasil se aprimorou nos últimos vinte anos, está mais madura, institucionalmente mais bem resolvida, etc. e para isso demonstra certa desenvoltura. B, que não entende tanto do assunto, sai da posição desfavorável interrompendo a linha de raciocínio de seu interlocutor quando este menciona o legislativo, contrapondo simplesmente que “o Legislativo no Brasil não funciona, e nunca funcionou”. Apelou para o senso comum, recentrou a discussão e agora está na ofensiva, podendo provar com relativa facilidade que o nosso Congresso não nos representa, é corrupto e gastador.

3-      Eaí-vai-ou-racha: Esse recurso consiste em apresentar as coisas como uma escolha trágica entre ir ou rachar. Um exemplo clássico dessa falácia é a escolha entre sexo e chocolate, uma vez que, até onde sei, podemos fazer sexo e depois comer um chocolate, ou o contrário, sem maiores problemas. O poder de argumentação vem do fato de que, ao se restringir a escolha a duas opções, a negação de uma delas implica a aceitação da outra. Ou isso, ou aquilo. Como facilmente se percebe, jogar o interlocutor na parede é uma posição de quem ataca, e não raro de quem bebeu mais. A dinâmica é a seguinte: A defende uma posição X; B defende uma posição não-X; A presume que B defende Y, um argumentos indesejável e que é apresentado como oposto simétrico de X. Se não X, então Y. No exemplo: A defende que o governo deve assegurar como invioláveis os direitos de propriedade intelectual, pois são eles que estimulam a inovação; B defende que a propriedade intelectual seja contingenciada por prioridades sociais e culturais; isso faz com que A impute a B o descaso com a inovação e sua associação com uma economia mimética de montagem e exportação.Em outras palavras, ou vai (propriedade intelectual e inovação) ou racha (pirataria generalizada e atraso econômico). A questão central é que há a possibilidade de nem ir, nem rachar. Por se rejeitar X (inviolabilidade dos direitos de propriedade), não se está aceitando Y (economia sem inovação). Da mesma forma, por aceitar X (sexo), não estou rejeitando Y (chocolate). A questão está em saber manobrar essas oposições. Mas como fazer isso em um boteco, quando ninguém pensa em X nem Y? A malandragem aqui, como em tantas horas da vida, é fazer o interlocutor dizer o que ele não disse. Tergiversar. Com isso é possível forçar a escolha trágica entre uma coisa ou outra, quando seria possível ter as duas ou nenhuma. Um exemplo: A defende que o Brasil tomou a atitude acertada a respeito da decisão boliviana de nacionalizar o gás em 2006; B defende que a posição brasileira precisava ser mais enérgica, mais firme, mas sem violência. A manobra de A (para acuar o vai-ou-racha) vai ser permanentemente apontar como B está defendendo uma saída coercitiva, mesmo sem usar as palavras, e que por trás do “falar grosso” está a violência enrustida. Em suma, A tenciona convencer B de que a única saída não-coercitiva é a atitude tal qual foi tomada, que está portanto correta.

4-      Duplo Twist Carpado: Agora estamos falando de manobras sofisticadas, mas cujo potencial é devastador. Essa técnica consiste em um jogo de palavras que subverte radicalmente o sentido do argumento adversário. Deixo diretamente os exemplos falarem por si: “Não pergunte o que seu país pode fazer por você. Pergunte o que você pode fazer pelo seu país” (Kennedy); “É tão difícil pensar o fim do capitalismo quanto pensar um capitalismo sem fim” (Boaventura de Sousa Santos); “A política é uma continuação da guerra por outros meios” (Foucault, contra Clausewitz: “A guerra é a continuação da política por outros meios”). Aparentemente, ela é a aplicação do brilhante ditado: não confunda a obra de arte do mestre Picasso com a pica de aço do mestre de obras. Só que ela exige um brilhantismo que o ditado não comporta: moldá-lo oportunamente na circunstância (no fio do discurso), com a matéria-prima disponível (com as palavras do interlocutor). Mas o efeito é proporcional à exigência: uma resposta desse nível, em uma discussão de bar, é um ippon. Às vezes o interlocutor pode persistir na querela, mas o impacto de tirada dessas é irreversível.

5-      Relativismo Quântico: A melhor definição para essa manobra foi dada por Gilberto Gil, quando cantou certa vez que “há de surgir uma estrela no céu cada vez que você sorrir/ há de apagar uma estrela no céu cada vez que você chorar/ o contrário também bem que pode acontecer/ de uma estrela brilhar quando a lágrima cair/ ou então de uma estrela cadente de jogar/ só pra ver a flor do seu sorriso se abrir”. Descontando-se o romantismo que não nos convém, o que está sendo dito é que o contrário de uma coisa pode ser verdadeiro tanto quanto ela própria. Bom, e aí? E aí que por esse meio pelo qual 92,86% das discussões pacíficas de boteco terminam, com os dois lados concordando que os dois lados estão certos, ou que os dois lados estavam dizendo a mesma coisa com palavras diferentes, ou que os dois lados se consideram pra caralho, e assemelhados. Aproveitando que é uma boa forma de terminar a discussão, eu terminarei também o texto, porque estou saturado de teoria e tenho umas garrafas cheias e umas polêmicas me esperando na esquina.